Morangos Silvestres, um filme humano, demasiado humano

Ingmar Bergman completaria cem anos neste sábado (14). Autor de filmes onde o tema é a alma humana, fez, há seis décadas, este filme que abre a caixa da reflexão sobre a vida e sua passagem.

Por José Carlos Ruy

Morangos Silvestres - por Helena Enne - Ilustração: Helena Enne

A vida madura traz reflexões sobre o caminho percorrido até ela – este é o tema do clássico (que fez 60 anos em dezembro de 2017) Morangos Silvestres (1957) do para lá de clássico diretor sueco Ingmar Bergman que, neste sábado (14), faria 100 anos de idade.

Morangos Silvestres é um filme simples, mas quanto tempo alguém precisa para desobrir isto? Ele começa com o som forte de uma badalada (que remete a Por Quem os Sinos Dobram, de John Donne), usada como o sinal para a reflexão que dá o mote do filme. O médico e professor de medicina Isak Borg, sentado em sua escrivaninha, pensa alto: “nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda minha visa social. Isto tornou minha velhice solitária” – uma reflexão explícita que abre este road-movie que descreve a viagem de automóvel de Estocolmo a Lund onde Borg seria homenageado por seus 50 anos de atividade médica e científica.

Na viagem, na velha casa onde passou a infância, Borg saboreia morangos silvestres que abrem o passado, como as famosas madeleines com chá despertaram em Proust, no romance que pode ser outra referência lembrada por Morangos Silvestres, Em Busca do Tempo Perdido.

A experiência sensorial, de saborear algo que remete à infancia, escancara a caixa das lembranças e das reflexões existenciais, sobre a vida, a experiência com o divino, o sentido de ações e decisções que, deixadas no passado, não podem mais serem mudadas. E o duro julgamento sobre si mesmo – um homem que, ao longo da vida, refugiou-se na ciência e foi tido por famíliares e amigos como lógico, frio e inflexível – como sua nora, que o acompanha na viagem, diz a ele, diretamente: um velho egoista, que só ouve a si próprio, sem consideração com os demais, e que esconde isso atrás do charme pessoal e da gentileza. Coisa que, no íntimo, ele nunca sentiu, vendo-se a si mesmo como solidário com os demais, ético, preocupado com as pessoas, embora uma certa timidez não tenha permitido a manifestação plena deste sentimento.

Morangos Silvestres pode ser entendido, deste ponto de vista, não só como a reflexão sobre as ações e sentimentos de um ancião mas, principalmente, sobre a maneira como foi julgado pelos demais so longo da vida. E do sentido que dá à homenagem que reeberia na Universidade, numa solenidade cuja origem se perde nos séculos iniciais desde sua fundação.

Bergman abriu o filme, logo após os letreiros iniciais, com a cena, fortemente simbólica, de um sonho. E que talvez explique as reticências e dificuldades que muitos encontram para compreender aquela narrativa. A cena é cébre: andando por uma parte da cidade que não conhece, Borg vê os relógios (um, público, e outro de pulso, do próprio Borg) sem ponteiros, que não podem, por isso, marcar a passagem do tempo, embora se possa ouvir seus mecanismos, junto com o pulsar de um coração. Há também uma carroça-fúnebre, sem condutor, que se prende em um poste de iluminação, na qual Borg vê-se a si próprio no caixão, onde o morto tenta pegar em sua mão e dizer-lhe algo.

O que significam os relógios sem ponteiro, ou aquele morto que era ele próprio? Já se esreveu muito para entender isso. Mas, para a compreensão do filme, talvez não seja o principal. Bergman, autor de filmes célebres como O Sétimo Selo (1956), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972), Cenas de um casamento (1973), O Ovo da Serpene (1977) Fanny e Alexander (1982), entre tantos outros – foram quase um por ano entre1946 e 2003, talvez tenha sido o diretor de cinama que mais se debruçou sobre os segredos da alma humana. Em Morangos Silvestres, ele traça um roteiro sensível neste esforço de desvendamento. E fez um filme humano, demasiado humano.