Em defesa dos “negócios da saúde”, EUA rejeitam aleitamento materno

Os Estados Unidos assumiram a defesa dos produtores de leite artificial, que gastam milhões em campanhas políticas e lobby, na Assembleia Mundial da Saúde realizada, em Genebra.

Assembleia Saúde OMS - Foto: OMS

A última Assembleia Mundial da Saúde, o organismo deliberativo da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi palco de mais um episódio em que a diplomacia norte-americana procurou fazer valer a força.

A apresentação de uma resolução em defesa do aleitamento materno e impondo restrições à promoção do leite artificial pelo Equador foi recebida pelos EUA com a ameaça de sanções comerciais e do fim do apoio militar junto à fronteira com a Colômbia, noticiou o The New York Times (NYT) no domingo (8).

Participantes no encontro internacional que pediram anonimato, com medo de represálias pelos EUA, descreveram ao jornal norte-americano as ameaças que se estenderam a outros países latino-americanos e africanos. O Equador acabou por retirar a sua proposta, que seria aprovada numa versão alterada e levada a discussão pela Rússia.

"Ficamos chocados porque não entendemos como é que uma questão como o aleitamento materno podia provocar uma reação tão dramática", afirmou uma responsável da delegação do Equador, referindo-se às ameaças norte-americanas.

Em causa estavam recomendações para limitar a promoção das fórmulas de leite artificial e medidas de apoio técnico aos estados-membros nesse sentido.

Três empresas multinacionais monopolizam o mercado mundial de leite artificial: a Abbott, a Mead Johnson e a Nestlé. A primeira consta de várias listas de financiadores de campanhas eleitorais norte-americanas em 2016 – gastou cerca de 1,5 milhões de dólares, mais de 640 mil dos quais para campanhas de 339 candidatos a cargos federais. Já em 2017, doou 35 mil dólares ao comitê para a posse do presidente Donald Trump.

A indústria, com um volume de negócios de 70 bilhões de dólares e cujo crescimento se tem sustentado com campanhas agressivas em países e comunidades mais pobres, numa estratégia descrita numa reportagem do The Guardian, nas Filipinas, tem um longo histórico de investimentos junto do poder.

Em 1982, a Abbott e a Bristol-Myers Squibb (que então detinha a Mead Johnson) deram uma contribuição generosa à Academia Americana de Pediatria. Entre 1984 e 1989, a taxa de mães a amamentar caiu oito pontos percentuais, notava então o New York Times.

A Nestlé, por seu lado, tem um registo mais modesto de contribuições para campanhas políticas, o que não significa que tem estado ausente dos corredores do poder. O grupo econômico baseado na Suíça gastou mais de 30 milhões de dólares em atividades de lobby político nos EUA e tem, atualmente, cinco "facilitadores de contactos" junto da Comissão Europeia. O investimento declarado é de quase 500 mil euros anuais e já neste ano assegurou quatro encontros com altos funcionários da Comissão Europeia, entre eles o próprio comissário português, Carlos Moedas.

Salvar vidas ou engordar o negócio

A Organização Mundial de Saúde recomenda o aleitamento materno exclusivo até aos seis meses de idade e, pelo menos, até aos dois anos em regime complementar. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em dois anos de implementação da iniciativa Hospital Amigo dos Bebés, no Hospital Central de Libreville, no Gabão, a mortalidade neonatal caiu 8%.

Num artigo na publicação científica The Lancet, um conjunto de especialistas identificam a "promoção ativa e agressiva de substitutos do leite materno" como um dos obstáculos à generalização do aleitamento materno, que descrevem como "nutricional, imunológica, neurológica, endocrinológica, económica e ecologicamente superior".