Guerra comercial entre EUA e China, catástrofe para países pequenos

 A escalada de sanções econômicas mútuas entre Washington e Pequim pode acabar de destruir o que resta da ordem neoliberal.

Por Antonio Luiz M. C. Costa

estados unidos e china

Depois de ameaçar e maltratar vizinhos e aliados na América, Europa e Ásia, o governo de Donald Trump decidiu comprar briga com alguém do seu tamanho. É fraco consolo, porém, para as nações menores. Como diz um ditado africano, quando os elefantes brigam, quem mais sofre é a grama.

Para resumir a escalada até o momento, em março os EUA impuseram tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio da China (como também de muitos outros países do mundo), que retaliou com tarifas de 15% a 25% sobre carne de porco e outros produtos no valor de 3 bilhões de dólares, valor semelhante ao de suas exportações prejudicadas.

Em 15 de junho, Washington anunciou uma taxa de 25% sobre mais 50 bilhões em produtos chineses, dos quais 34 bilhões imediatos a serem seguidos em breve por mais 16 bilhões pendentes de uma revisão da lista original.

A lista afeta principalmente produtos favorecidos pela política industrial chinesa de promoção de setores tecnológicos e de alto valor agregado, principalmente indústria aeroespacial, tecnologia da informação e comunicação, robótica, maquinário industrial, novos materiais e automóveis.

Foi evitada, ao menos nesta fase, a taxação de armas e bens de consumo como celulares, calçados e roupas, que com certeza seria impopular entre os eleitores, além de prejudicar a grife Ivanka Trump e outros negócios da família.

O número de 50 bilhões deve-se à alegação de empresas estadunidenses de perdas de igual valor por “roubo” de propriedade intelectual por chineses. Também anunciou para até o fim do mês um plano para restringir o investimento chinês nos EUA e limitar suas compras de tecnologia avançada.

Pequim retaliou no mesmo dia com igual encargo sobre 34 bilhões em importações de produtos estadunidenses, inclusive soja, carnes, laticínios, suco de laranja e carros elétricos, e mostrou uma segunda lista de mais 16 bilhões – inclusive petróleo, gás natural e equipamentos médicos – a ser taxada quando a segunda parte da lista dos EUA fosse implementada.

Trump respondeu, três dias depois, pedindo a seu governo uma lista de mais 200 bilhões anuais em mercadorias chinesas a serem taxadas em 10% e ameaçando com outros 200 bilhões em caso de retaliação, elevando o total a 450 bilhões.

É uma dificuldade para Xi Jinping, pois a política de “olho por olho, dente por dente” fica desequilibrada quando se tem mais dentes que o adversário: os EUA exportam apenas 130 bilhões ao ano para a China, enquanto esta vende 505 bilhões para Washington.

Entretanto, Pequim pode encontrar outras maneiras de retaliar – por exemplo, manipular suas reservas de 1,18 trilhão de dólares em bônus do Tesouro dos EUA, dificultar viagens de chineses a esse país e também a operação de empresas estadunidenses em seu território.

Até onde a disputa pode chegar? Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, fez algumas estimativas. Uma guerra comercial para valer pode significar tarifas no valor de 30% a 60% – geralmente consideradas pelos economistas como o nível “ótimo” quando um país poderoso tenta favorecer ao máximo seus termos de troca.

Em 1930, quando o Congresso de Washington aprovou a Lei Hawley-Smoot para tentar amenizar a crise de 1929, as tarifas chegaram a 59,1%, para os produtos taxáveis (a intenção era 45%, mas as tarifas fixas aumentaram quando os preços de produtos caíram) e 19,8% para a média das importações.

Segundo Krugman, isso reduziria o comércio internacional em 70%. Se isso se generalizasse, o volume das trocas globais voltaria a cair, em termos de porcentagem do Produto Mundial Bruto, dos atuais 56% para menos de 20%, nível não visto desde os anos 1950. Seria a anulação de mais de seis décadas de globalização progressiva.

Algo parecido aconteceu na década de 1930: o valor do comércio mundial caiu de 5,3 bilhões de dólares em 1929 para 1,8 bilhão em 1933, uma retração de 66% em termos nominais – perto de 50% em termos reais, considerada a deflação. De 19% do produto mundial, o comércio mundial caiu para 10%, menos do que em meados do século XIX.

A embaixadora Nikki Haley e o secretário de Estado Pompeo anunciam a ruptura dos EUA com o Conselho de Direitos Humanos da ONU (ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP)
O impacto na produção é limitado para países com um grande mercado interno. No caso dos EUA, a perda seria teoricamente de 2,1% do PIB, igual à queda das importações (15% do PIB dos EUA e reduzidas em 70%, ou 10,5%) multiplicada pela metade da tarifa (40% na hipótese de Krugman). Não seria muito diferente para o Brasil, onde as importações são 12% da economia, a China, onde são 17%, ou o Japão, onde são 15%.

A situação muda de figura para países mais dependentes do comércio exterior, como o Canadá (33%), México (40%), Chile (28%), Coreia do Sul (35%) e Reino Unido (30%). Para os países pequenos, a maioria, a guerra comercial será catastrófica. E isso não é o pior.

Calcula-se que, de 1929 a 1932, a guerra tarifária foi diretamente responsável por uma retração de 2% na economia mundial, mas o Produto Mundial Bruto caiu 15% nesse período. Mais decisivo foi o colapso da liquidez internacional, ou seja, dos recursos financeiros disponíveis para financiamentos internacionais, por sua vez resultantes da perda de confiança na economia e nas moedas após o fracasso generalizado do padrão-ouro, falências em massa e o estouro da bolha especulativa de Wall Street.

O problema é que os análogos contemporâneos desses riscos também estão presentes. Mesmo se o efeito teórico no PIB for limitado e as importações em parte substituídas por produção local, a reviravolta significaria a desarticulação de linhas de produção concebidas para uma economia globalizada e falências em massa de indústrias hoje prósperas.

Alguns setores deprimidos desde os anos 1980 seriam favorecidos, mas a maioria dos empregos perdidos não retornará, devido aos progressos da automação nas últimas décadas. Que estamos diante de uma bolha especulativa nas bolsas dos EUA poucos ainda duvidam e o sistema monetário internacional é hoje tão precário quanto nos anos 1920.

Desde o desmoronamento do acordo de Bretton Woods, em 1971, e as peripécias de Paul Volcker nos anos 1980, tudo se apoia em sucessivas improvisações e na crença em que os EUA agiriam com responsabilidade em relação ao dólar, ao comércio, às finanças e às suas alianças internacionais para absorver os saldos financeiros e produtivos do mundo capitalista.

Desde o início do governo Trump, essas ilusões têm sido desfeitas uma a uma. Trata déficits comerciais como ataques inimigos, mesmo se compensados por fluxos financeiros na direção oposta. Acredita apenas em força e coerção e ignora o papel da construção de consenso e hegemonia.

A recente decisão de abandonar o Conselho de Direitos Humanos da ONU é apenas mais uma demonstração de seu desprezo por valores compartilhados e compromissos multilaterais, tanto os assumidos por governos anteriores, inclusive a Parceria Transpacífico, o Acordo de Paris, o Nafta, o acordo nuclear com o Irã e a Otan, quanto aqueles nos quais acaba de pôr sua própria assinatura, como foi o caso da recente declaração conjunta do G-7.

Não acata sequer princípios econômicos: embora o desemprego esteja baixo e a economia em recuperação, cortou os impostos das empresas e das pessoas físicas mais ricas a ponto de criar o maior déficit orçamentário da história. Em 18 meses, será preciso somar 2,34 trilhões de dólares aos atuais 21,16 trilhões da dívida pública, que irá de 105% para 115% do PIB.

Em qualquer outro país, seria arriscar o colapso da moeda. Não no caso dos EUA, enquanto capitalistas estrangeiros precisarem comprar seus títulos, aplicar seus lucros e o Fed enxugar a quantidade de dólares em circulação com a venda de ativos.

Trump conta com isso para desarticular as organizações internacionais e substituí-las por relações bilaterais de suserano a vassalos ou, como prefere Slavoj Žižek, de espartanos militarizados para com seus periecos (satélites submissos, mas relativamente ricos e privilegiados da Europa e Ásia) e hilotas (países pobres explorados sem piedade).

O risco é os parceiros se recusarem a continuar esse jogo. Em 1999, quando só a globalização era deus, Thomas Friedman o seu profeta e O Lexus e a Oliveira um livro sagrado, os países pobres da África seriam banidos do futuro paraíso mundial americanizado: “Esses Estados são fracos e pequenos o suficiente para que o sistema simplesmente construa uma parede corta-fogo ao redor deles”.

Hoje, é o resto do mundo que deveria considerar isolar os EUA atrás das muralhas construídas por eles mesmos. Seu peso na economia mundial já não é tão grande, a liderança tecnológica não é mais tão incontestável e, sem a hegemonia ideológica e alianças estratégicas estáveis, seriam apenas outro país grande com armas nucleares, como a Rússia. Esparta, depois de perder seus aliados e ser enquadrada pelo poder rival da Macedônia, tornou-se apenas uma cidade-Estado retrógrada e isolada.

O problema, naturalmente, são as contradições entre os interesses desses diferentes países e o fato de ser a China o único deles com dimensão e projeto compatíveis com liderar esse tipo de articulação.

Como modelo de hegemonia não é aceitável para grande parte do mundo, a começar pelos países europeus e os banqueiros do Ocidente não querem pensar em trabalhar com uma moeda tão pouco transparente quanto o yuan.

Entretanto, não são menores as dificuldades para a Europa de unir-se em um projeto comum a ponto de torná-la um sério rival econômico e político de Washington e Pequim.