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Guimarães Rosa, vereda do Brasil

Quem deixa Belo Horizonte seguindo rumo ao norte, na direção dos “gerais” – os descampados que se abrem para o centro do país – se tomar o rumo da primeira curva a leste, logo depois de Sete Lagoas, chegará em Cordisburgo.

Por Alexandre Figueiredo*

Guimarães Rosa - Ilustração: Olavo Costa - Ilustração: Olavo Costa

Cidade pequeníssima fundada no final do século 19 por um padre que lhe deu o nome estranho, já em si um neologismo: Cordisburgo, cidade do coração. Ali, naquele “quase-lugar”, em uma casa ampla de esquina, nasceu, há 110 anos, João Guimarães Rosa. Três meses depois morreria Machado de Assis e, de fato, é preciso recuar até Machado para encontrar outro autor brasileiro de igual estatura.

Muita gente diz que não é fácil ler Guimarães Rosa. O estilo, a linguagem e os próprios temas seriam obstáculos mais instransponíveis que o Liso do Sussuarão, só atravessado por Riobaldo após um pacto com o diabo. É preciso esse mesmo pacto para atravessar a obra de Rosa? Já foi dito que o diabo é velho e, por isso, é preciso ser velho para entendê-lo. De alguma maneira, talvez seja preciso envelhecer para começar a entender o Rosa.

Certa vez ele disse que seus livros eram escritos para bois, e não para cavalos, que vivem comendo muito a vida inteira: “primeiro o boi engole, depois regurgita para mastigar devagar e só engole de vez quando tudo está bem ruminado. Essa comida vai servir, depois de tudo, para fecundar a terra. Meus livros são como comida de boi”. Então, o próprio Rosa só pede a seus leitores a boa vontade para refletir um certo tempo, um pouco dessa qualidade dos interioranos que tem vontade de “tornar a explicar diariamente todos os segredos do mundo”.

Quem se dispõe encontra, desde aquela casa de Cordisburgo, um homem generoso. Traga suas dúvidas, suas angústias, suas questões mais profundas e os livros do Guimarães Rosa terão, senão uma resposta (porque isso seus personagens nunca se propuseram a entregar), uma desconfiança mais precisa do que a trazida por você para a primeira página de um livro.

Se quiser entender mais sobre os descaminhos e reentrâncias da vida, seus perigos e a "gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder", pergunte ao Rosa. Quer se aprofundar na complexidade da formação do Brasil e da brasilidade? Abra os livros do Rosa. Quer falar de aventuras homéricas, fora e, principalmente, dentro de si, aproxime-se desse estranho chamado João, um autor capaz de citar na mesma página um pensamento de Plotino e uma dança de roda do norte de Minas, sem sacrifício da verossimilhança. E, se quiser falar de amores, quer sejam os vividos, quer sejam os ideados, pense nesse autor que colocou na boca de boiadeiros violentos a delicadeza da explicação que Dalberto deu a Soropita: “Amor é coragens. E amor é sede depois de se ter bem bebido…”

O curioso é que, pelo que dizem, ele próprio era um sujeito reservado, fechado, desses que tiram um prazer enorme dos silêncios. Riobaldo, em “Grande Sertão: Veredas”, diria que silêncio “é a gente mesmo demais”. Rosa, que um dia imaginou escrever um “tratado de brinquedos para os meninos quietos”, contou a Ascendino Leite, em uma das raras entrevistas que concedeu, que tempo bom de infância ele só teve quando conquistou o direito de ficar fechado no quarto lendo ou deitado no chão imaginando histórias. A infância “é um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando”.

Esse era um homem que, tendo crescido ouvindo as histórias dos muitos tipos que frequentavam a venda de seu pai – boiadeiros, pescadores, agricultores, jagunços, violeiros, viajantes, gente do governo – continuava escrevendo a ele, seu Flordualdo, pedindo mais detalhes quanto àquilo em que a memória lhe falhava. Diria, anos mais tarde, que todos os sertanejos são “fabulistas por natureza”. O povo do interior, escreveu a João Condé, editor de “Sagarana”, seu primeiro livro, “dá melhores personagens de parábolas”.

Esse homem, que foi médico e depois diplomata; que serviu como funcionário do Itamaraty em Hamburgo, Bogotá, Paris e, por fim, no Rio de Janeiro; que deixou sua cidade natal aos nove anos, sempre se definiu em essência como um vaqueiro (e de Cordisburgo). De uma de suas viagens com uma comitiva de boiadeiros, nos legou um caderno com anotações de palavras, cantigas, nomes de pássaros, árvores, rios…perguntava mais do que padre, disse dele o vaqueiro Manuel, que se tornaria o personagem Manuelzão, de “Uma Estória de Amor”.

Esse foi um homem que denunciava a gramática e a ciência da filologia como inimigas da poesia. Declarava amor absoluto pela palavra, pela língua. Detestava a forma com que via o português, o nosso, falado no Brasil, mais rico metafisicamente que o falado na Europa, “descalço e despenteado” pelo palavrório e pela pieguice.

Esse foi um escritor que dizia que seu grande livro seria um dicionário. Disse também, em carta a seu tio Vicente, que era preciso refundir a língua portuguesa no tacho, mexendo muitas horas. Não à toa, será a literatura de Rosa que abrirá caminhos para os africanos de língua portuguesa como Luandino e Mia Couto.

Fiel a esse credo, Rosa criou uma língua praticamente própria, mas ria quando lhe chamavam de revolucionário da linguagem. Dizia que seria mais apropriado chamá-lo de “reacionário da língua”, pois muito do que viam em seus livros não era novo, mas sim o resgate do português antigo das cantigas e crônicas medievais. E mesmo assim, as palavras que ele criou já foram estudadas e reestudadas, havendo até mesmo um dicionário com seu léxico contendo mais de oito mil verbetes. No seu tacho ele misturou as dezenas de línguas que conhecia. No fim da vida, trabalhava no estudo e incorporação do tupi, tendo como resultado mais importante o conto “Meu Tio, o Iauretê”, imediatamente estudado pelos poetas concretistas.

Por paradoxos como esse, Rosa intrigava e ainda intriga a crítica. Ele mesmo disse a Lorenz que “os paradoxos existem para que se possa exprimir algo para o qual não existem palavras”. O título de um de seus textos mais assombrosos, “A Terceira Margem do Rio”, é só um dos muitos exemplos possíveis. Basta dizer que Rosa foi um homem que conseguiu escrever sobre o poder do acaso sem perder a fé no destino. É um autor de grandes mistérios.

A Terceira Margem do Rio / Ilustração: Tainan Rocha

Benedito Nunes, que talvez tenha sido seu mais importante leitor, conta que quando recebeu o privilégio de estar entre as primeiras pessoas que passaram os olhos pelas páginas dos contos de “Tutaméia – Terceiras Estórias”, após mal conter o terror de ler o texto sob o olhar do próprio Guimarães Rosa, perguntou o porquê dessas “terceiras estórias”, já que o autor não havia escrito as “segundas”. Rosa riu e explicou que preferia deixar esse mistério para a crítica.

Tutaméia, última obra publicada por ele em vida, ainda faz o favor de trazer quatro prefácios, espalhados entre os contos, e um novo índice ao final do livro. Na verdade, apenas nesse segundo índice é que os prefácios são assim identificados, intrigando o leitor. Acredite: quem termina a leitura não consegue conter a tentação de ler de novo, na ordem inversa, os quarenta contos do livro, a partir das chaves daquela surpresa.

Muita tinta boba já foi gasta para dizer que em sua obra sobra a metafísica e falta algum engajamento ou esforço de interpretação das condições da vida concreta. Além de rasteira, essa é uma crítica infundada. Não à toa, Rosa é o autor do único romance que figurou entre as dez mais importantes obras de interpretação do Brasil produzidas no século 20, em votação da qual participaram intelectuais das mais diversas colorações.

Em “Grande Sertão: Veredas”, como em todos os seus livros, é um sertão historicamente deixado de lado, à margem das narrativas de construção nacional, que surge, diz a que veio, e fala em voz alta. Esse é um romance que se inicia com um travessão e termina, sem divisão de capítulos ou interrupção alguma, 500 páginas depois. O sertão tinha muito a falar. “Sou um sertanejo e acho maravilhoso que você deduza isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu”, disse Rosa naquela entrevista concedida a Lorenz.

Essa palavra, “sertão”, de impossível tradução, talvez tenha vindo do português falado na África, onde designava simplesmente as terras do interior. Mas, foi entre nós que alcançou a plena significação física e metafísica. O interior: o lado de dentro. No Brasil, sertão era tudo que se opunha às cidades da costa do país e, com Rosa, passou a ser também as paisagens da consciência humana.

Riobaldo narrou sua vida a um interlocutor identificado como um “doutor”, alguém das cidades e universidades que vão buscar longe de nós as máscaras que vestem e as lentes enviesadas que usam para falar do Brasil. Rosa foi um homem que falava e compreendia dezenas de línguas e literaturas, sem nunca deixar de declarar seu profundo amor pela nossa língua. Um homem que foi e teve contato com grandes eruditos, mas que, diante de alguma dúvida séria, dispensava o conselho de “algum doutor professor” para buscar a opinião de um velho vaqueiro lá de Cordisburgo.

Por fim, se quiser entender mais sobre o Brasil, não hesite: abra os livros de Guimarães Rosa. Porque nós, brasileiros, somos Sorôco entoando a cantiga dos loucos que embalava a descida de sua mãe e sua filha ao trem que as levaria ao hospício. Somos o filho de seo Rigério perseguindo a vaquinha vermelha, sem saber que a vontade dela de retornar à casa o levaria também a um encontro impensado com o destino. Somos os raciocínios estranhos do boi Rodapião, quando começou a se parecer com os homens. Somos os que não perceberam o quão sábio e forte era o velho burrinho Sete-de-Ouros. Somos Medeiro Vaz incendiando sua casa ancestral e seu passado para cair no mundo buscando justiça…E somos tantas outras veredas dessa obra imensa e cada vez mais fundamental.

“Cidade acaba com o sertão”, disse Riobaldo. “Acaba?” – indagou ele próprio ao “doutor” e aos leitores. Em um país educado a esquecer-se de si, essas veredas deixadas por Rosa são ainda a fonte para a travessia do Brasil e de nós mesmos.