Comissão da Verdade da Venezuela esclarece liberação de opositores

A Venezuela passa atualmente por um processo de reconciliação nacional. A liberação de pessoas envolvidas em atos violentos durante os protestos de 2017, organizados pela oposição de direita e que tinham o objetivo de derrubar o presidente Nicolás Maduro, é uma das medidas que marcam a conjuntura. Nesta quarta-feira (13), o governo venezuelano entregou benefícios processuais a 43 pessoas envolvidas em atos de violência política. No total, 202 pessoas já foram liberadas.

Por Fânia Rodrigues

Presos políticos na Venezuela - AVN

Em entrevista, o secretário executivo da Comissão da Verdade da Assembleia Nacional Constituinte da Venezuela, Larry Devoe, explica como está se dando este processo de conciliação iniciado pelo presidente Nicolás Maduro.

Davoe, que também é secretário do Conselho Nacional de Direitos Humanos da Venezuela, órgão vinculado à vice-presidência da República, afirma que muitos desses jovens presos, e que agora estão sendo liberados, foram pagos por dirigentes opositores para promover a violência.

A Venezuela viveu um dos períodos mais violentos das últimas duas décadas entre março e junho de 2017. Partidos opositores, ONGs internacionais e movimentos de direita foram às ruas dispostos a derrubar o presidente da República, Nicolás Maduro. No início, eram marchas pacíficas, mas, a partir do segundo mês, o clima político foi se acirrando e os atos de rua tornaram-se cada vez mais violentos.

Os grupos opositores fecharam ruas e acessos de várias cidades do país e, principalmente, na capital, Caracas. As manifestações dessa natureza, conhecidas na Venezuela como “guarimbas”, deixaram dezenas de vítimas. Segundo informações do Ministério Público, 29 pessoas foram queimadas vivas por opositores e os confrontos deixaram mais de cem pessoas mortas. A partir de investigações, cerca de 80 agentes das forças de segurança do Estado foram presos por crimes e uso abusivo da força, e aproximadamente 300 civis foram detidos por uso da violência, entre opositores e chavistas simpatizantes do governo.

A reconciliação nacional foi a resposta de Maduro. O presidente venezuelano solicitou formalmente à Comissão da Verdade da Assembleia Nacional Constituinte, ao Ministério Público e à Justiça do país que liberassem todos os presos envolvidos em violência política, com exceção daqueles acusados de assassinato ou de agressão grave.

Larry Devoe é o secretário executivo da Comissão da Verdade da Assembleia Nacional Constituinte da Venezuela


Até dezembro daquele ano, o governo havia liberado 69 presos, no marco dos diálogos de paz com a oposição, apesar de a informação não ter sido difundida na imprensa. Já neste ano, nos dias 1 e 2 de junho, foram liberados mais dois grupos de 40 pessoas, entre eles, dirigentes políticos, militantes de partidos, um general retirado e alguns jovens sem ligação partidária.

Leia a entrevista na íntegra:

Quais foram os dirigentes políticos opositores liberados pela Justiça no início de junho?

Foram liberadas 80 pessoas, que saíram dos centros de detenção e passaram a cumprir medidas cautelares, como a obrigação de se apresentarem aos tribunais [uma vez ao mês] e proibição de sair do país. Entre eles estavam dois deputados suplentes da Assembleia Nacional (Congresso), como o deputado Gilber Caro, do partido Vontade Popular, que foi processado por participação em atos violentos. Esse também é o caso de Renzo Prieto, outro deputado suplente, que estava preso por sua participação nesses episódios de violência. Havia também alguns jovens, que, na prática, eram quem executavam os planos.

Qual é o perfil dessas pessoas que foram presas durante os atos violentos?

O grupo dos 80 liberados [no início de junho] é conformado por 80% de homens e 20% mulheres; 95% estavam sendo processados, ou seja, o processo estava em curso, e 5% condenados. Entre os condenados está Raúl Emilio Baduel.

Ele é filho do general Raul Isaías Baduel, certo?

Sim, correto. Ele e Alexander Tirado [dirigente do Vontade Popular] foram presos e condenados por participar de atos violentos, mas, apesar da sentença, receberam os benefícios de liberdade.

O grupo tinha algumas pessoas que tiveram responsabilidade de dirigência nos episódios de violência, mas a imensa maioria desses presos é de jovens que, na prática, o que fizeram foi participar ativamente na confrontação com as forças de segurança do Estado, no ataque a instalações públicas, contra os cidadãos.

Quais as características sociais desses jovens processados?

Avaliamos a situação socioeconômica dos jovens colocados em liberdade e vimos que muitos deles vinham de setores humildes. Nas entrevistas que fizemos, eles nos contaram que se envolveram nessa situação porque viram uma oportunidade de melhorar a renda deles e da família.

Essa informação consta nos autos dos processos?

Não, isso eles disseram à Comissão da Verdade. Nós entrevistamos muitos deles e nos contaram que na época estavam em uma situação econômica difícil, estavam sem trabalho, viviam em zonas populares; e chegaram [os organizados dos protestos violentos] através de amigos e familiares, ofereceram dinheiro para que esses jovens participassem das ações violentas. Inclusive, eles nos contaram que havia uma tarifa estabelecida.

Como era isso?

Isso foi em 2017 e, nessa época, pagavam de 50 a 80 mil bolívares diários [o salário mínimo estava em 200 mil bolívares]. Nos contaram também que o valor aumentava se eles apanhassem ou sofressem ferimentos da polícia. Eles eram estimulados a gerar a máxima confrontação com a polícia. [Os dirigentes] diziam: "se você conseguir que um policial te dê um golpe com arma ou dispare contra você, e ficar ferido, o pagamento que vai receber é muito maior". Chegamos à conclusão de que eles buscaram criar uma grande cena, queriam gerar as imagens que permitiriam levar ao mundo a imagem de um governo que, supostamente, reprimia despiedosamente os cidadãos. Muito desses jovens, especialmente do grupo que saiu em dezembro, tiveram sua situação socioeconômica atendida. Foram incorporados a trabalhos produtivos, em programas sociais, como o programa Plano Trampo Juvenil (programa de estágio).

Quantos foram liberados em dezembro?

Foram 69.

Quantos receberam esse tipo de benefício?

Entre os 69, posso dizer que a imensa maioria. Porque o grupo de dezembro foi menos emblemático que esse de agora [do início de junho]. Posso dar outro dado. Quase 100%, praticamente a totalidade deles foi reintegrado de forma positiva na sua vida cotidiana e abandou a prática da violência. Isso quer dizer, o objetivo de dar-lhes uma segunda chance foi cumprido.

Esses benefícios jurídicos e as liberações estão gerando reações diversas. No dia em que as primeiras 40 pessoas foram liberadas, um grupo de manifestantes protestou em frente à Assembleia Nacional Constituinte, no centro de Caracas, uma região historicamente chavista. Foi uma manifestação espontânea de quem saía do trabalho e passava por ali naquele momento. Do outro lado da cidade, na zona leste, em uma região de maioria opositora, fizeram uma homenagem a uma das vítimas das guarimbas, um jovem que foi queimado vivo por opositores. A placa em homenagem ao jovem foi vandalizada na mesma semana. A reconciliação entres esses dois setores da sociedade venezuelana é possível?

Por isso é importante a proposta do presidente Nicolás Maduro, no sentido de que o próprio chefe de Estado assume a tarefa da reconciliação nacional. Quando se analisa os conflitos na Venezuela, se nota que o conjunto da sociedade considera-se vítima. Todos se viram afetados pelos episódios de violência. Todos tivemos problemas para sair de nossas casas para ir ao trabalho, porque as vias estavam fechadas. Tivemos dificuldades em levar nossos filhos à escola, porque muitos centros educativos, sobretudo nas zonas de classe média, foram fechados devido à dificuldade de circulação dos professores, já que não havia transporte público. Sem falar em toda a situação de estresse que a situação de violência permanente gerou. Em 2017, foram praticamente quatro meses de exercício diário da violência. Então, a sociedade, sobretudo aquele setor que se identifica com a Revolução Bolivariana, se considera vítima dessas pessoas que foram presas.

Dentro desse cenário está também a questão das vítimas diretas.

Algumas pessoas foram mais afetadas, que são aquelas que perderam um familiar produto da violência ou foram elas mesmas feridas em alguma ação. Por isso, é importante ver também a posição que o Comitê de Vítimas das Guarimbas assumiu. Essas vítimas, que foram as pessoas mais afetadas, disseram que é importante apoiar esse processo de reconciliação encabeçado pelo presidente da República. Porque manter a polarização, o ódio que quiseram semear na sociedade venezuelana, o que vai gerar é mais violência.

Tem um caso de uma senhora, que sempre conto, ela tem quatro filhos, um foi morto nas guarimbas de 2014. Soraia Bravo, que é membro do Comitê de Vítimas das Guarimbas. Em uma das reuniões, enquanto discutimos o tema da reconciliação nacional, ela nos disse: ‘tenho razões de sobra para odiar, para não querer apoiar essa liberação, porque mataram o meu filho. Meu filho hoje está em um cemitério, resultado da ação dos grupos políticos violentos’. Seu filho era membro da Guarda Nacional Bolivariana, o mataram no estado Aragua. Depois, ela nos disse: ‘tenho razão de sobra para odiar, mas eu tenho outros três filhos. Não quero que nosso país tenha outro episódio de violência e que isso afete também meus três filhos’.

Qual é a tarefa principal da Comissão da Verdade?

A Comissão da Verdade venezuelana é um pouco diferente de outras experiências na América Latina. Esse tipo de comissão geralmente é instalada pós-conflito, como a argentina e a brasileira. No nosso caso, é uma Comissão da Verdade instalada no meio do conflito, por isso tem uma função preventiva, porque, entre outras coisas, tem a tarefa de fazer com que a escalada do conflito diminua. Se analisar nossa história recente, vai perceber que os episódios de violência política são cada vez mais duros. Se se compara as guarimbas de 2006 com as de 2014, vai ver que essa última foi muito mais violenta. E se se compara os protestos violentos de 2014 com os de 2017, veremos que em 2017 foi muito mais forte, até porque vimos práticas que nunca havíamos visto na Venezuela, como a fato de se queimar pessoas vivas simplesmente por suas opiniões políticas. Então, a primeira função da comissão é baixar o nível de polarização, mas também atender às vítimas.

O partido político de oposição Copei, assim como o ex-candidato a presidente Javier Bertucci são alguns dos mediadores dessas liberações. Mas, gostaria de saber se existe algum tipo de diálogo com os setores mais radicais da oposição, como os partidos Primeiro Justiça, Vontade Popular e Ação Democrática?

Existe um setor da oposição que sempre repudiou a Comissão da Verdade, que nunca quis integrá-la. Em abril de 2016, quando foi criada a primeira Comissão da Verdade, foram designadas quatro vagas para os deputados da oposição, mas eles não ocuparam. Em julho de 2017, quando foi a criada essa Comissão da Verdade no interior da Assembleia Nacional Constituinte, novamente houve esse espaço de participação, mas até o momento não quiseram participar desse processo. Por isso é valiosa a posição que assumiu esse setor da oposição, do Copei, do ex-candidato a presidente Javier Bertucci e os quatro governadores do partido Ação Democrática, que governa estados importantes como é o caso de Mérida, Táchira, Nova Esparta e Anzoátegui.
A leitura política que se faz é a que esse setor que aceitou apertar a mão estendida do presidente Nicolás Maduro está dizendo que, apesar das diferenças que segue tendo com o governo, essas diferenças não impedem o trabalho conjunto para, pelo menos, garantir a paz que o país reivindica. Todas as pesquisas de opinião apontam que a imensa maioria deseja a paz e a estabilidade que permitam empreender as transformações na área econômica que o país necessita.

Existe alguma intenção em liberar o dirigente político do partido Vontade Popular Leopoldo Lopez? O caso dele se encaixa no perfil das pessoas estão sendo liberadas?

Na Comissão da Verdade estamos revisando todos os casos de pessoas que estão privadas de liberdade por participar em atos políticos violentos. O ponto de partida para nós é a informação oficial que fornece à Justiça. Não trabalhamos com as listas elaboradas por nenhum organismo que não seja o Estado. A Comissão está revisando todos os casos e definimos alguns critérios de exclusão. Um deles é que as pessoas que estão processadas ou condenadas por homicídio ou grave atentado contra a integridade física não serão beneficiadas com essas medidas. Também ficam excluídos dessas medidas os funcionários do Estado, entre eles os policiais, membros da Guarda Nacional Bolivariana, das Forças Armadas Nacional Bolivariana. Violadores dos Direitos Humanos igualmente não receberão benefícios jurídicos.

Contra Leopoldo Lopez tem alguma acusação de crimes de lesa humanidade?

Não. Ele está sendo acusado de crimes que ocorreram no dia 12 de fevereiro de 2014, por instigar a violência e vandalismo público. Assim como os outros, a comissão também está avaliando esse caso. O presidente já anunciou que vai seguir produzindo medidas dessa natureza durante as próximas semanas.

Existe um prazo final para a liberação de todos os beneficiados?

É um processo de avaliação permanente. Esse é um assunto que requer uma análise detalhada. A maioria das pessoas beneficiadas são submetidas a uma entrevista com membros da Comissão da Verdade, que percorreu vários centros de detenção. A intenção era escutar a versão dos acusados sobre os fatos, mas também saber se estavam dispostos a retomar o exercício democrático. Isso também atendeu a solicitações de familiares e advogados junto à comissão. Leopoldo Lopez em algum momento também já foi beneficiado por medidas da Comissão da Verdade quando saiu do centro de detenção para cumprir prisão domiciliar.

Entre os 80 liberados no início desse mês havia chavistas simpatizantes do governo ou eram todos opositores?

Esse é um ponto importante, porque, quando fazemos a avaliação dos casos, não ficamos checando a qual partido o acusado pertence. Não vamos verificar também se está nas listas de organizações não-governamentais. O que fazemos é uma análise dos fatos pelos quais ela está sendo processada e se corresponde com delito de violência política. Então, entre essas pessoas, há um grupo que não é reivindicado pela oposição, que não está em nenhuma das listas da oposição, mas que participaram dos atos violentos, em agressões contra pessoas que pensavam diferente deles e tinha outra posição política.

Qual é a proporção de pessoas liberadas que eram reivindicadas pela oposição e aqueles liberados que não estavam nas listas opositoras?

O que acontece é que esse é um tema difícil…

Entendi que não quer fazer essa diferenciação, mas se estamos falando de manifestações políticas, por motivação política, também é muito difícil eliminar a questão ideológica, já que essas pessoas estavam presas justamente por confrontar as ideias de maneira violenta. Então, retirar o caráter político não seria o mais justo.

Não, claro. A imensa maioria das pessoas que foram beneficiadas com essas medidas possuem alguma identidade com os partidos que fazem parte da oposição venezuelana. Mas, em muitos casos, foram levados por esses mesmos partidos para gerar e participar dos atos violentos. Vou dar um exemplo. No ano passado, durante audiências da Assembleia Nacional Constituinte, compartilhamos informações fornecidas por alguns desses jovens presos, que nos informaram que deputados da oposição, como é o caso do deputado Fred Guevara [Vontade Popular] os contataram para participar das ações violentas. Esses jovens, muito deles, não foram incluídos nas listas de presos que os opositores divulgam pelo mundo, porque não formam parte da estrutura de nenhum partido.

Nesse processo de reconciliação nacional, que envolve a liberação de presos envolvidos em violência política, qual é o principal aspecto a ser destacado?

Esse é um processo que vai caminhando por duas vias paralelas. O processo de reconciliação que requer um sinal de paz em relação aos que participaram da violência, mas também deve haver sinais e ações em relação às vítimas da violência. Porque a reconciliação não será possível se não houver justiça, reparação e o atendimento adequado às vítimas. Nós, da Comissão da Verdade, estamos acompanhando a mais de 120 vítimas, fornecendo assistência jurídica, apoio psicológico e econômico. A maioria das vítimas vêm de extratos sociais pobres.