PEC dos gastos provoca queda histórica no combate ao trabalho escravo

No último dia 13, o país comemorou o aniversário de 130 anos da abolição da escravatura. Data em que a Princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. A monarca, que entraria para os livros de História como uma estadista liberal e abolicionista decidida, decretava ali que o Brasil, finalmente, estava libertando sua população negra para viver uma vida independente e digna, depois de mais de três séculos de senzala.

Por Pedro Galindo

trabalho escravo - Sergio Carvalho/MTE

De volta ao século 21, no entanto, o que se vê é um panorama muito mais próximo do Brasil Imperial do que o desejável. É o que apontam os últimos dados do Radar do Trabalho Escravo, ferramenta desenvolvida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em atualização na última terça-feira. Em outras palavras, os números mostram com clareza absoluta que o combate ao trabalho escravo contemporâneo deixou de ser uma prioridade para o Governo Federal.

Responsável por fiscalizar pessoas e empresas, a partir de denúncias sobre a existência de trabalho em condição análoga à escravidão, o Ministério do Trabalho encontrou, até o último mês de abril, 606 trabalhadores nessa situação em 2018. Em 2017, foram 556. Números bem distantes dos 6.025 de 2007, ano que registrou mais resgates desde o início da série histórica disponível no Radar, em 1995.

Talvez o leitor esteja se perguntando se a redução no número de resgates não indicaria justamente uma queda também no número de trabalhadores em situação análoga à escravidão. De acordo com o Procurador do Trabalho Tiago Muniz Cavalcanti, essa seria uma conclusão equivocada. Antigo coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério Público do Trabalho, ele avalia que esses indicadores retratam precisamente o contrário: são um indício de como está ficando difícil lutar contra a cultura escravocrata no país.      

Sinais

Tiago explica que, desde a sanção da PEC dos gastos públicos, no fim de 2016, o Governo “fechou a torneira”. E todos os órgãos envolvidos nesse combate sofreram cortes drásticos em seus orçamentos. “O Ministério Público do Trabalho (MPT) ainda ajuizou uma ação civil-pública para garantir o repasse de recursos suficientes para assegurar a continuidade das operações do grupo especial de fiscalização móvel, que deflagra em torno de 48 operações por ano”, conta. Era o primeiro sinal de que o Planalto não via a erradicação do trabalho escravo como uma de suas prioridades. A ação nem chegou a ser julgada: constrangido pela repercussão midiática, o Governo assegurou o repasse, e a divisão de combate ao trabalho escravo seguiu, de tanque cheio.

Mas se essa divisão específica do Ministério do Trabalho conseguiu escapar da guilhotina, o mesmo não pode ser dito sobre a pasta como um todo. Tiago diz que o grupo móvel não sofreu cortes orçamentários diretos, mas toda a estrutura do MTE, que coordena e realiza todas as fiscalizações ordinárias, sofreu cortes drásticos. “A gente passou por um período, no ano passado, em que não foi deflagrada nenhuma fiscalização em zona rural, porque faltava dinheiro de toda ordem. Então, a partir do momento em que você enxuga o número de fiscalizações em âmbito rural, é lógico que você vai deixar de resgatar trabalhadores. Esse é o primeiro fator dessa redução”, avalia o procurador.

O segundo fator, segundo ele, é o baixo número de auditores fiscais do Trabalho. “No início da década de 2000, a gente tinha o dobro do número de auditores que a gente tem agora. Em compensação, a gente tem o dobro da população economicamente ativa. A estrutura, o aparato humano, está aos pedaços. A partir do momento do impeachment, tudo isso foi potencializado por conta da limitação de gastos públicos, e chegou a um nível extremo”, revela.

Outra oportunidade em que o Planalto não hesitou em andar de mãos dadas com o escravagismo foi em outubro do ano passado, quando editou uma portaria que flexibilizava os conceitos de trabalho escravo e dificultava a fiscalização. A legislação foi criticada amplamente dentro e fora do país. A bancada ruralista apoiou. “Eles dificultam demais, sempre se fazem presentes para dificultar o nosso trabalho. Nas comissões em que há uma representação da ala patronal, sempre opinam em sentido contrário às decisões tomadas pelo órgão colegiado. Muito embora formalmente eles se digam contra a escravidão, eu não tenho nenhum pudor em dizer que eles são a favor”, dispara.

Senso comum

Apesar dos esforços desses órgãos no sentido de erradicar o trabalho escravo, a cultura escravocrata resiste. Não apenas nos latifúndios e porões pelo Brasil, mas também na cabeça de muitos brasileiros. Um erro comum, por exemplo, é pensar que restrição do direito de ir e vir é a principal premissa da escravidão. “Nem a lei diz isso, nem muito menos a história”, afirma o procurador.

“O trabalho escravo, na realidade, está mais associado ao exercício, direto ou indireto, dos atributos do direito de propriedade”, discorre. “A situação é caracterizada pela apropriação de um ser humano pelo outro. Até mesmo no passado colonial, é incorreto achar que os escravos eram cativos. Havia escravos que frequentavam o comércio, a igreja aos domingos. E não deixavam de ser escravos”.

Uma cultura escravocrata.

Segundo o procurador do Trabalho, o discurso escravocrata é registrado até mesmo nas decisões de alguns juízes. “Eles dizem que a situação é a situação de vida do trabalhador. Traduzindo, o juiz diz que só pode ser vítima de trabalho escravo quem não tem um nível de vida econômica alto. Aos miseráveis, a miséria. Uma cultura escravocrata”, resume.

Entretanto, mesmo enxergando tantas explicações negativas para esses números, Tiago não deixa de creditar parte da queda ao trabalho que tem sido desenvolvido nessa parceria entre o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho. “A gente está enfrentando o trabalho escravo contemporâneo há 23 anos, e percebe que houve uma melhora nesses pontos críticos. Isso se deve ao Estado se fazer presente”.

Satisfação

Para o atual chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério do Trabalho, Maurício Krepsky, os cortes orçamentários pesaram menos do que a continuidade dos esforços de todos os órgãos envolvidos na luta pela erradicação. “A gente está desde 1995 com essa política pública, e não se podia esperar que os números fossem subindo eternamente”, opina. Ele diz que 2018 deve superar os anos recentes, e projeta um cenário otimista para os futuro próximo. “Eu vejo isso caminhando para que a gente tenha ações mais bem planejadas, com inteligência na busca de informações. E embora tenha algumas dificuldades para executar o nosso trabalho, eu considero que está sendo muito bem feito, dentro das possibilidades”.