Comunidade científica rechaça "Lei do Veneno" sob análise na Câmara

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou, no dia 22 de maio, um manifesto contra a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, conhecido como “Pacote do Veneno”. Até esta segunda-feira (28), outras 23 sociedades científicas subscreveram o documento, que alerta para os perigos da flexibilização dos controles sobre agrotóxicos no país.

alimentos com agrotóxicos e transgênicos - Fernando Frazão/Abr

Se aprovado o projeto, o termo “agrotóxico” será substituído por “produto fitossanitário" ou "produto de controle ambiental”. Para a SBPC, o termo agrotóxico ou pesticida é reconhecido mundialmente, e a proposta sugere a troca do termo sem nenhuma justificativa científica plausível.

Além disso, o PL prevê, entre outros pontos, que os agrotóxicos possam ser liberados pelo Ministério da Agricultura mesmo se órgãos reguladores, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não tiverem concluído suas análises.

"A literatura científica nacional e internacional aponta que, dentre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição aos agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestada através de distúrbios cognitivos e comportamentais, e quadros de neuropatia e desregulação hormonal", destaca o texto.

"Além disso, há estudos que evidenciaram os efeitos imunotóxicos, caracterizados por imunoestimulação ou imunossupressão, sendo este último fator favorável à diminuição na resistência a patógenos ou mesmo diminuição da imunovigilância, com comprometimento do combate às células neoplásicas levando a uma maior incidência de câncer", prossegue.

Íntegra do manifesto

Está neste momento sendo discutida, em uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a aprovação do Projeto de Lei Nº 6.299/2002, relacionado aos agrotóxicos. O projeto “altera os arts 3º e 9º da Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências”.

O projeto de lei traz uma proposta de alteração da Lei nº 7.802/89, restringindo a atuação dos órgãos de saúde e ambiente em todo o processo de liberação e controle dos agrotóxicos, concentrando as competências no setor da agricultura, com destaque para os seguintes pontos: a eliminação dos atuais critérios de proibição de registro de agrotóxicos descritos no § 6º do Artigo 3º da referida Lei, principalmente carcinogenicidade, mutagenicidade, teratogenicidade, distúrbios hormonais e danos ao sistema reprodutivo; a possibilidade de comercialização de produtos que ainda não tenham sido autorizados pelos órgãos de governo, mediante a criação do registro temporário e da autorização temporária. O termo agrotóxico ou pesticida é reconhecido mundialmente, porém a nova legislação proposta sugere a troca do termo agrotóxico para defensivo fitossanitário e produtos de controle ambiental, sem uma justificativa científica plausível para tal.

O uso excessivo de agrotóxicos ameaça seriamente os ecossistemas além de representar um problema grave para a saúde. A presença desses compostos nos ecossistemas terrestres e aquáticos representa um risco para os organismos, com vários efeitos negativos já reportados e resultantes desta exposição. A saúde humana é a mais afetada pelos efeitos adversos do uso de agrotóxicos. Muitas dessas substâncias têm o potencial de se acumular na corrente sanguínea, no leite materno e, principalmente, nos alimentos consumidos pela população. Um relatório do Ministério da Saúde, de 2018, registrou 84.206 notificações de intoxicação por agrotóxico entre 2007 e 2015. A Anvisa apontou, em 2013, que 64% dos alimentos no Brasil estavam contaminados por agrotóxicos. Registre-se que, em apenas doze anos, entre 2000 e 2012, houve um aumento de 288% no uso de agrotóxicos no Brasil.

A literatura científica nacional e internacional aponta que, dentre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição aos agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestada através de distúrbios cognitivos e comportamentais, e quadros de neuropatia e desregulação hormonal. Além disso, há estudos que evidenciaram os efeitos imunotóxicos, caracterizados por imunoestimulação ou imunossupressão, sendo este último fator favorável à diminuição na resistência a patógenos ou mesmo diminuição da imunovigilância, com comprometimento do combate às células neoplásicas levando a uma maior incidência de câncer.

A questão dos agrotóxicos, apesar de polêmica por envolver interesses de setores da economia como a indústria química e do agronegócio, é um exemplo importante da necessidade de serem utilizadas evidências científicas para dar suporte à elaboração de legislações e políticas públicas. Um caso clássico mundial, e emblemático, foi o livro “A Primavera Silenciosa” da pesquisadora e escritora norte-americana Rachel Carson, publicado em 1962. Carson denunciou vários efeitos negativos resultantes do uso do DDT em plantações. As suas análises foram a base para a criação de um Comitê de Consultoria Científica do presidente dos Estados Unidos sobre a temática dos agrotóxicos, que acabou por reforçar suas conclusões, fornecendo elementos para a criação futura de órgãos como a Agência de Proteção Ambiental Americana.

Em 2015, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, uma das associações científicas afiliadas à SBPC, elaborou um dossiê de alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde (disponível no site: www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/) no qual foram reunidas evidências científicas sobre o risco que toda a população brasileira está correndo frente a medidas que intensificam o uso e a exposição a agrotóxicos no País. Além das consequências para o ambiente e para a saúde da população, o uso exagerado de agrotóxicos afeta a economia brasileira com um custo muito alto (mais de 12 bilhões de dólares por ano) uma vez que a produção de insumos agrícolas, incluindo agrotóxicos, é controlada por grandes multinacionais.

Diante do cenário do uso de agrotóxicos no Brasil e preocupada com a desregulamentação do aparato regulatório de proteção à saúde e ao meio ambiente relacionado aos agrotóxicos no Brasil, a SBPC se manifesta contra a aprovação do Projeto de Lei Nº 6.299/2002 e demais projetos apensados. Alertamos a sociedade brasileira para os efeitos potencialmente catastróficos da aprovação deste PL para a saúde pública. A nossa entidade, que está à disposição para trazer as evidências científicas que justificam sua posição, se soma às análises técnico-científicas de órgãos que já se manifestaram pela rejeição do PL como a Fiocruz, o INCA, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente, a ANVISA e a ABA, que produziram notas técnicas alertando para os riscos contidos nesse Projeto de Lei. A SBPC conclama as instituições de pesquisa, os órgãos governamentais, o Congresso Nacional, as entidades representativas dos diversos setores sociais e a sociedade brasileira como um todo para que seja realizado um debate mais amplo e aprofundado sobre as possíveis consequências deste PL, e com o tempo adequado, para que não se aprove às pressas uma legislação sobre os agrotóxicos que pode trazer consequências ainda mais graves para a saúde da população e para o meio ambiente brasileiro.

Ildeu de Castro Moreira

Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

Assinam o manifesto da SBPC:

Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC)

Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (ABECO)

Associação Brasileira de Cristalografia (ABCr)

Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação – (Socicom)

Sociedade Astronômica Brasileira (SAB)

Sociedade Botânica do Brasil (SBB)

Sociedade Brasileira de Biociências Nucleares (SBBN)

Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBF)

Sociedade Brasileira de Catálise (SBCat)

Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS)

Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (SBCTa)

Sociedade Brasileira de Computação (SBC)

Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM)

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)

Sociedade Brasileira de Fisiologia Vegetal (SBFV)

Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)

Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE)

Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI)

Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT)

Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO)

Sociedade Brasileira de Parasitologia (SBP)

Sociedade Brasileira de Toxinologia (SBTx)

Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)