“A origem da desigualdade que vivemos é do período escravocrata”

No dia 13 de maio de 1888, foi proclamada a Lei Áurea, que em seus dois artigos, torna extinta a escravidão no Brasil. Após 130 anos, o racismo ainda é imperante na sociedade e a população negra é aquela que ocupa os trabalhos mais precários, que possui os níveis de escolaridade mais baixos, que tem sua juventude exterminada nas periferias. 

por Larissa Costa

Benilda Brito, coordenadora do Nzinga, coletivo de mulheres negras de Belo Horizonte - Cristiano P.Silva

Sobre esse assunto, o Brasil de Fato MG conversou com Benilda Brito, coordenadora do Nzinga, coletivo de mulheres negras de Belo Horizonte. Confira entrevista:     

Brasil de Fato MG – Qual é a história do 13 de maio?

Benilda Brito – Essa data é, na história, extremamente importante. O Brasil foi o país que mais invadiu o continente africano e trouxe negros na condição de escravos. Na África, nós não éramos escravos. Muitos reis, rainhas, pessoas de tribos, de várias etnias, povos de várias línguas foram capturados e trazidos à força. E o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, só em 1888. E depois, em 1891, a primeira Constituição brasileira vai proibir de votar todos os pobres e mendigos. Ora, quem são os pobres e mendigos pós-abolição? No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel abole a escravidão, mas ninguém falou o que fazer com o tanto de negro trazido da África. Ninguém pensou “coloca no navio negreiro e leva de volta pra África”. Foi um silêncio do Estado brasileiro absoluto. Por isso, hoje, nós somos a maioria dos pobres, favelados, mendigos. Um povo que teve que sobreviver à sua própria sorte, à sua própria organização. Ninguém pensou em mercado de trabalho, em escola. Então, nós fomos nos organizando, por isso que a gente vai na favela, na periferia, na vila e vê aquele tanto de gente negra, um ajudando o outro. A gente teve que ir criando arranjos para sobreviver. Hoje no mercado de trabalho, topamos qualquer trabalho. A gente aprendeu a fazer isso para sobreviver.

Então não é uma data comemorativa, mas um dia para lembrar da luta e da resistência do povo negro…

Não estamos comemorando nada, inclusive estamos chamando o 13 de maio deste ano de “130 anos: cadê a abolição?” Para a gente a abolição foi uma falácia. Acho que o Brasil está muito atrasado em termos de inclusão racial. Hoje, qualquer historiador, pesquisador, economista consegue decifrar que toda essa desigualdade social que nós vivemos está ligada à escravidão. Nossa população negra foi aquela que acumulou o capital primitivo do Brasil e depois não teve acesso a nada. Assim que acaba a abolição, Isabel também chama os imigrantes para ter terra, trabalho e dinheiro. A gente anda em vários lugares e percebe homenagens aos imigrantes, na universidade federal, no tribunal de justiça, até no zoológico tem homenagem aos imigrantes. Para o povo negro a gente vê o que? Somente os nossos símbolos que colocamos com muita luta: Iemanjá, na Pampulha, a Praça do Preto Velho [no bairro Silveira], que sempre é pixada, um monumento à Zumbi, no Santa Efigênia, que a gente colocou com muita luta, mas que está abandonado pelo poder público. Então a gente é um povo sem direito, sem memória, sem símbolos, sem autoestima. Por isso o movimento negro, de mulheres negras, é importante, pois mostra que a identidade racial, a nossa luta, a nossa conquista não pode ser esquecida.

O que mudou para a população negra depois de 130 anos da Lei Áurea?

130 anos se passaram e a gente não percebe nenhum avanço. Há 30 anos, a gente estava discutindo os cem anos da abolição. Fizemos uma pauta enorme de reivindicações, principalmente em políticas públicas. Hoje a gente está com a mesma pauta: pedindo emprego, carteira assinada, direito trabalhista, distribuição de renda, acesso à escola, saúde, ‘não matem nossas crianças’, ‘não ao genocídio da juventude negra’. A gente percebe que o Brasil não dá acesso a direitos ao povo negro como dá a outras raças e etnias. 130 anos é um momento de reflexão, que falta muito para gente lutar ainda. Há 30 anos também, estávamos em festa, porque era a primeira vez em uma Constituição ia considerar o crime de racismo como inafiançável e imprescritível. Hoje a gente não consegue contar cinco pessoas presas no Brasil por racismo. A gente comemorava que os quilombolas teriam direito a terra. Hoje a gente não conseguiu cinco títulos de comunidades quilombolas reconhecidos pelo governo federal. Então continuamos denunciando a desigualdade, mesmo com o que a gente conseguiu garantir.

E neste contexto de golpe, como está a população negra?

Nossa situação vai de mal a pior. Outra data significativa que 2018 marca são os 40 anos do Movimento Negro Unificado (MNU), que foi uma das primeiras entidades negras que saiu para a rua denunciando o racismo e a violência. Há 30 anos, o MNU saiu com um slogan “a princesa esqueceu de assinar nossa carteira”. E agora, com o governo golpista, com essa reforma trabalhista, a gente vai para a rua falar a mesma coisa. Isso não é uma coincidência da história, mas o momento em que a história ratifica a perda de direitos. No que a gente tinha conseguido avançar, retrocedemos demais com o golpe. Todas essas estratégias de acabar com o Bolsa Família, a reforma da Previdência e outras ameaças vão em cima da população pobre. E a grande maioria da população pobre é negra. Essa perda de direitos tem efeito dominó e vai atingir principalmente as mulheres negras, aquelas que garantem o acesso das crianças negras à escola, à saúde.

Neste ano acontece o Encontro Nacional de Mulheres Negras +30. Quais são as perspectivas?

O primeiro Encontro de Mulheres Negras aconteceu em São Paulo há 30 anos. E para dezembro, estamos construindo outro encontro, em Goiânia (GO). Aqui em Minas, estamos com um grupo enorme, reunindo toda segunda-feira, no Nzinga, para discutir estratégias de participação e mobilização do estado inteiro para que a gente possa fazer o encontro estadual em setembro. O que a gente quer discutir é que existem muitos povos, principalmente o povo negro que é a maioria da população do país, que foram trazidos para cá violentamente e que estão sobrevivendo a própria sorte. Somos pessoas cidadãs, a gente tem que ser inserido na lógica de desenvolvimento social. Esse ano é emblemático e, além disso tudo, tem as eleições, um espaço para, minimante, garantir a democracia, que também é ameaçada o tempo inteiro. A luta contra o racismo não é só do povo negro, mas de todo mundo que acredita numa sociedade mais fraterna, mais igualitária, mais humana, que nós mesmos fazemos parte.