Nascimento do comunismo brasileiro

Invertendo a relação de antecedente a consequente, o comunismo introduziu-se no Brasil antes do marxismo. Na dialética das categorias políticas, esta inversão foi historicamente precedida por outra, em sentido oposto.

Por João Quartim de Moraes

O Jovem Karl Marx - Divulgação

Marx e Engels eram militantes da Liga Comunista, que os incumbiu de redigir, em 1848, o Manifesto Comunista. As obras fundadoras da teoria marxista só começaram a ser elaboradas na segunda metade da década seguinte: a primeira edição do volume I do Capital, é de 1867. Elas exerceram forte influência na II Internacional Socialista, fundada em 1889, quando Marx já tinha morrido, mas o marxismo havia sido consagrado pelas melhores inteligências do movimento socialista e operário como a insuperável teoria da evolução econômica da sociedade.

Nos partidos integrantes da II Internacional, os marxistas coexistiam com outras tendências do movimento operário. A capitulação da maioria dos social-democratas perante a deflagração da catástrofe bélica de 1914 levou a minoria revolucionária a romper com eles. A vitória da Revolução de Outubro 1917 consagrou a política dos bolcheviques e colocou na ordem do dia a reorganização dos partidos de inspiração marxista. Lênin levou muito a sério, nesta reorganização, o nome queo novo movimento revolucionário internacional deveria adotar. “Social-democracia” tornara-se desde 1914 sinônimo de oportunismo; “bolchevismo” (de “bolscinstvó” = maioria) era um termo informalmente arraigado na história do partido operário social democrata russo (onde era predominante a influência de Lênin), mas por isso mesmo impróprio para designar a novaorganização internacional do proletariado. Setenta anos depois do Manifesto, pareceu-lhe que a melhor designação seria comunismo.

A primeira grande diferença entre a versão de 1848 e a de 1918 está,obviamente, em que aquela preconizava a revolução, ao passo que essa emanava de uma grande revolução proletária vitoriosa. A segunda, inseparável da primeira, está na concepção do partido. No Manifesto as questões de organização não são discutidas pela clara razão de que não apareciam como problemas práticos demandando uma elucidação teórica. Devemos a Lênin esta elucidação, sinteticamente exposta em 1901, no curto escrito Por onde começar?, que anunciou o célebre Que fazer?, publicado no ano seguinte. Como toda grande obra fundadora, ela se enraizava nas condições concretas do combate revolucionário clandestino sob a autocracia czarista, mas o alcance da teoria do partido de vanguarda da classe operária, articulado por revolucionários atuando permanentemente como uma só vontade segundo os princípios do centralismo democrático, é universal. Diferentemente dos partidos de massa da social-democracia, que se atrelaram à lógica da luta parlamentar, o partido leninista não renunciava, no plano dos princípios, a nenhuma forma de luta.

Diferentemente do movimento operário e socialista europeu, cuja ala marxista revolucionária passou da Internacional social-democrata à Internacional comunista fundada por Lênin, os fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), a começar de Astrojildo Pereira, seu primeiro intelectual de peso, provinham do anarco-sindicalismo, então predominante no pequeno, mas combativo movimento operário; passaram ao comunismo no entusiasmo suscitado pela Revolução de Outubro e uma vez comunistas, só depois, através dele, ao marxismo. Durante a grande guerra inter imperialista de 1914-1918, a Confederação Operária Brasileira (COB), de orientação anarco-sindicalista, manteve-se à frente das lutas populares pela paz, notadamente a partir de 1917, quandoo governo brasileiro, cedendo à pressão britânico-estadunidense, declarou guerra aos impérios da Europa central.

Entrementes, começavam a chegar ao Brasil notícias de que a classe operária russa, guiada pelo Partido Bolchevique, havia conquistado o poder pela via da insurreição. Para os militantes anarquistas abertos aos fatos novos e pouco apegados a dogmas, a sólida certeza de que na Rússia tinha efetivamente ocorrido uma “revolução proletária” tornava o resto secundário. A defesa da revolução de Outubro contra as calúnias da imprensa dos fazendeiros e capitalistas foi assumida, pelo então ainda anarquista Astrojildo, a voz mais lúcida e convincente que se ergueu nessa batalha ideológica, expressando-se nos “pequenos e pobres jornais operários”. Da defesa da Rússia Soviética à passagem do anarquismo ao comunismo havia só um passo à frente, que ele não tardou a dar.

Em Formação do PCB – 1922-1928. Notas e documentos, estudo histórico pioneiro, Astrojildo reconstituiu os primeiros anos do Partido, do Congresso de fundação, em 1922, até o III Congresso, reunido no final de 1928, marcado por acesas discussões, bem como por duros confrontos. Este curto e turbulento período coincidiu com as rebeliões tenentistas, que culminaram na grandiosa Coluna Prestes. Foi lutando bravamente, sob perseguição policial, para organizar as bases do Partido, que os fundadores do comunismo brasileiro tomaram seu primeiro contato com a teoria marxista. Otávio Brandão, em especial, dois anos apenas após a fundação do PCB, levou adiante a tentativa pioneira de compreender o Brasil à luz do marxismo, escrevendo Agrarismo e industrialismo, “Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil”, como anuncia o subtítulo.

Esse texto serviu de subsídio para as teses que Astrojildo Pereira apresentou no II Congresso do PCB (16 a 18 de maio de 1925). No título está expressa sua tese principal: a contradição entre interesses agrários e interesses industriais constituía o fator determinante dos confrontos políticos e da guerra civil larvada que convulsionavam o Brasil. Nela se baseava a aliança da classe operária com a pequena-burguesia democrática na luta contra a “oligarquia agrária entrançada com a oligarquia financeira” (Brandão, 2006, p.40). Também notáveis são suas observações sobre o imperialismo e a subordinação econômica dos interesses agrários à alta finança inglesa, bem como sobre as perspectivas sombrias que nos reservava nossa posição de monoexportadores de café.