É o pior momento para frear a integração, diz ex-presidente da Unasul

A Unasul (União das Nações Sul-americanas) atravessa uma profunda crise após a Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru decidirem não participar mais das reuniões do organismo, o que consiste num desmonte. Este é um dos principais órgãos de integração latino-americanas e para Ernesto Samper, ex-secretário-geral, trata-se do pior momento para retroagir neste sentido.

Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia

Em entrevista, Samper, que é ex-presidente da Colômbia e foi o último secretário-geral da Unasul – atualmente o organismo está com este cargo em aberto – analisa a atual conjuntura latino-americana. Ele analisa os desafios do campo progressista após a onda conservadora que vem crescendo e disse ver com preocupação a prisão de Lula, a quem considera “um preso político – com todo respeito à justiça brasileira”.

Leia a entrevista na íntegra:

Qual sua opinião sobre a decisão dos seis países que abandonaram a Unasul?

Poderia ser uma atitude construtiva se o desejo deles, como têm manifestado, fosse resolver de forma imediata a crise que a Unasul vive há vários meses. Falamos da impossibilidade dos países de chegar a um acordo para eleger quem deveria ser meu sucessor. Se, pelo contrário, não há uma questão ideológica, seria uma crise muito mais profunda. Ou seja, se o que estão buscando é gerar uma crise no sistema de integração, isso seria lamentável e inoportuno.

O que a região ganha ou perde com esta situação?

Na verdade não ganha muito, a menos que isso contribua para solucionar a crise institucional, que se explica com a regra que tornou possível a conformação da Unasul e que hoje é a que está causando danos. A regra é que todas as decisões devem ser tomadas por consenso. Neste sentido, seria necessário pensar em uma fórmula intermediária para o caso concreto de a eleição do próximo secretário-geral, como a expressão de uma maioria relativa, se não houver consenso.
Nunca foi tão importante que existisse uma voz como a da Unasul que, em nível estritamente político, enfrente ameaças e riscos que confrontam a região. Me refiro concretamente às políticas contra a América Latina do senhor Donald Trump, que sequer teve o trabalho de vir à Cúpula de Lima, mas segue expulsando imigrantes, propondo a construção de muros, subindo tarifas, deixando de cumprir acordos da mudança climática que são vitais para a América Latina ou manifestando sua vontade de sair do Tratado do pacífico que, de alguma forma, integraria todos os esforços que o continente fez para construir uma frente comum do Pacífico. De toda forma, não deixa de ser uma situação paradoxa esta de não existir uma voz presente neste contexto justamente quando é mais necessária.

Considera que a Unasul integra um projeto de região que já não existe?

Obviamente não. A Unasul nasceu como uma resposta às dificuldades encontradas ao fim do século passado com um modelo de desenvolvimento que não havia gerado crescimento nem bem-estar, com uma situação crescente de pobreza e desigualdade em momentos em que o sistema interamericano estava começando a ruir. Creio que nenhum destes fatores que motivaram a Unasul diminuíram, pelo contrário, o que temos visto é que sua atuação tem permitido que a região ofereça resultados como os 120 milhões de pessoas que saíram da pobreza e que tudo isso tenha sido feito sem considerações ideológicas. Todos os países, sem distinção, entenderam que ao começar o século se não fossem feitos esforços significativos para reduzir a pobreza, a legitimidade do sistema democrático seria comprometida. De tal forma, que aí estão os fatores que deram origem à Unasul e que nos permitiram construir um projeto de região que deveria ser abandonado por nenhuma razão neste momento.

O Brasil foi o principal impulsor da região. A situação brasileira atual pode estar pesando?

Assim é, entre os fatores que mais têm dificultado a consolidação do projeto [de integração], está o quase nulo protagonismo internacional que o Brasil está jogando neste momento. Quando cheguei [à presidência do bloco], o papel do Brasil era de servir de uma espécie de transatlântico em meio a diferentes opiniões para conseguir um consenso. Era o articulador de todas as posturas. Lamentavelmente este empenho do Brasil em busca da integração sul-americana não tem sido mais visto. Pelo contrário, tem complicado ainda mais as possiblidades de que haja um ator neutro e decisivo para lidar com as diferenças.

Qual sua opinião sobre a detenção do Lula?

Me parece, com o devido respeito à Justiça brasileira, que Lula é um preso político. Eu digo porque seus direitos fundamentais como a presunção de inocência, o direito à apresentação de provas, o respeito à sua intimidade própria do direito de defesa e todas estas normas universais que formam parte do que se denomina o devido processo foram desdobradas por uma decisão que tem mais de oportunidade política do que de reafirmação de uma decisão judicial. Lamentavelmente, pelas circunstâncias em que se fez esta detenção, e o que aconteceu com a ex-presidenta Dilma Rousseff, temos que concluir que na região estão operando poderes factuais que chegaram à justiça. Isso que chamamos de judicialização da política, que se converteu em politização da justiça, é uma das maiores enfermidades que podem afetar uma democracia.

O senhor vê uma mudança de ciclo na América do Sul diante da chegada dos governos de direita?

Na medida em que estes governos foram eleitos por meio de processos democráticos e resultam da vontade das maiorias, merecem todo o respeito. Espero que justamente a origem democrática os comprometa a respeitar os direitos da oposição de se converter em alternativa e que os temas que formem parte de um projeto progressista sejam valorizados com aporte para a realização das três metas fundamentais da Unasul, que são a preservação da paz como um patrimônio valioso, a vigência dos direitos humanos e que a região, em sua totalidade, possa melhorar seus níveis de competitividade.

Se estes valores são alcançados e consolidados, não importam as bandeiras ideológicas que cada governo professe, pois isso vai resultar em benefícios para a integração. A integração é um projeto de larga escala e não somente interno, mas também externo. Espero que os governos entendam que este não é o momento para se desintegrar este projeto, mas pelo contrário, temos que nos integrarmos cada vez mais.

Se vive na região uma democracia de baixa intensidade?

Permita-me fazer a seguinte consideração: o projeto político da Unasul nasceu a partir de três valores fundamentais. Preservar a paz da região como um oásis de paz no mundo, dar continuidade aos processos democráticos que foram severamente afetados durante as ditaduras militares e assegurar a vigência de todos os direitos humanos, não somente os políticos, mas também os econômicos e sociais. Resisto a pensar que os países que começaram esta crise estejam renunciando à busca destes três eixos fundamentais; que estão se opondo a que haja um continente em paz como está confirmado com os Acordos de Paz de Havana na Colômbia, ou o rechaço da presença de bases militares; ou que não estejam de acordo com que se mantenha em vigência os direitos humanos começando por aqueles que favorecem a inclusão social; ou que queiram regressar às épocas autoritárias do passado. Por isso, para entender a importância de preservar a Unasul, é preciso recordar qual sua origem e a história que levou seus fundadores a definir este projeto de integração que não é um projeto de livre comércio, nem uma união aduaneira, mas é realmente uma tentativa de coincidências de vontades que giram em torno de propostas fundamentais.