2001: Uma odisseia literária e cinematográfica

Por tudo o que representou e representa para a história do cinema, da literatura e da cultura universal, com seu ambiente estranho, instigante e multifacetado, onde o silêncio e a subjetividade imperam em face ao turbilhão de dúvidas e significados que as palavras não são capazes de traduzir, “2001: Uma Odisséia no Espaço”, obra resultante da união das mentes visionárias de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick, constitui-se, como um clássico entre os clássicos.

Por Duarte Dias*

2001 - uma odisseia no espaço - Olavo Costa

A Sentinela

Nascido em 1917 na pequena cidade costeira de Minehead, no sudoeste da Inglaterra, Arthur Charles Clarke, primeiro de quatro filhos de uma família de agricultores, desde cedo manifestou interesse pelo universo da ciência, com destaque para a astronomia, que passou a explorar como autodidata. Em 1936, com o súbito falecimento de seu pai e o agravamento das condições financeiras de sua família, teve que interromper os estudos formais ao término do ensino médio, partindo para Londres em busca de emprego.

Após ser contratado como funcionário de uma agência do governo inglês, Clarke logo tratou de dar vazão a sua vocação científica, sendo aceito como membro da Sociedade Interplanetária Britânica, onde passou a contribuir não só com artigos de caráter técnico, mas também com narrativas literárias no campo da ficção científica, especialmente contos.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, Arthur C. Clark foi recrutado como técnico da Royal Air Force, vindo a ser um dos primeiros profissionais a utilizar informações de radar, tecnologia que se mostrou vital no contexto geral do conflito. Ao término da Guerra, ainda no ano de 1945, a revista “Wireless World” publicou um artigo de sua autoria, “Relés Extraterrestres”, onde ele teorizava sobre a criação de um sistema de satélites geostacionários capazes de transmitir sinais de rádio e televisão em escala global, algo que veio a se concretizar décadas depois. Logo após, agraciado com uma bolsa de estudos no “King’s College”, em Londres, Clark pode finalmente ingressar no ensino superior, vindo a se formar, com honras nas disciplinas de matemática e física, em 1948.

Editor assistente na revista “Science Abstracts”, Clark publicou, em 1950, o livro “Interplanetary Flight”, que abordava, tecnicamente, a questão das viagens espacias. Em 1951 foi a vez de lançar seu primeiro romance completo, “Prelude to Space”. Nesse mesmo ano a revista “Ten Story Fantasy” publicou um conto que, originalmente escrito para uma competição literária promovida pela BBC em 1948, viria a mudar a vida de Arthur C. Clark: "Sentinel of Eternity", título posteriormente alterado e consagrado como "The Sentinel" (A Sentinela).

Deus

“A próxima vez que olhar a Lua encher no alto, para o sul, olhe com atenção o seu rebordo à direita e deixe o seu olho viajar para cima ao longo da curva do disco.” Assim começa o conto “A Sentinela”, do escritor inglês Arthur C. Clark. A narrativa, repleta de imaginação e mistério, logo chamou a atenção de um jovem e talentoso cineasta norte-americano, Stanley Kubrick.

Primogênito de um casal de classe média – o pai era médico e mãe, dona de casa – Stanley Kubrick nasceu Nova York, em 1928. Criado no Bronx, notabilizou-se, em sua trajetória escolar, por ser um péssimo aluno, menos por sua inteligência – notada desde sempre – do que pelo espírito rebelde e contestador, o que fez com que fosse classificado como o pior aluno da turma ao final do ensino médio.

A despeito de sua fraca atuação escolar, Kubrick viu-se dividido entre seguir a carreira de escritor ou de jogador de beisebol, paixões que adquirira nas aulas de literatura e esportes, as únicas que prendiam, mesmo que precariamente, sua atenção – "Eu nunca aprendi nada na escola e nunca li um livro por prazer até os 19 anos", chegou a dizer em uma entrevista.

A escola, ambiente por demais incômodo para o jovem Kubrick, ainda seria o lugar que veria florescer outras de suas habilidades, como a de baterista de uma banda de jazz e fotógrafo do jornal escolar, sendo essa última atividade a responsável por sua contratação, aos 16 anos, pela revista “Look”, onde passou a dar expediente.

Rejeitado por várias faculdades e sem perspectiva de adentrar o ensino superior, Kubrick mergulhou de vez na fotografia, fazendo do Museu de Arte Moderna de Nova York a sua segunda residência. Foi nesse período que, atraído pelo cinema e com o apoio de amigos e familiares, começou a produzir filmes de curta-metragem, vindo a realizar seu primeiro filme de longa metragem aos 25 anos, em 1953. No longa, intitulado “Fear and Desire” (Medo e Desejo), Kubrick, além de dirigir, também atuou como diretor de fotografia, editor e soundman, polivalência que viraria uma das características marcantes em sua carreira.

Na sequência vieram, já com o aval de grandes produtoras, os filmes “Killer’s Kiss” (A Morte Passou por Perto – 1955), “The Killing” (O Grande Golpe – 1956), “Paths of Glory” (Glória Feita de Sangue – 1957), “Spartacus” (1960), “Lolita” (1962) e “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (Dr. Fantástico – 1964), obras que alçaram o nome de Stanley Kubrick ao panteão dos grandes diretores em atividade naquele período.

Era chegada a hora de partir para o maior desafio na carreira daquele a quem Malcolm McDowell, futuro astro de “Laranja Mecânica”, chamava de “Deus”.

Odisséia

Ao tomar contato com o conto “A Sentinela”, escrito por Arthur C. Clark, o cineasta Stanley Kubrick logo percebeu ter encontrado a premissa para o filme que vinha acalentando já há algum tempo, uma obra que incursionaria pelo gênero da ficção científica, mas sob uma perspectiva “adulta”, inovadora tanto em termos narrativos quanto técnicos e estéticos.

A questão é que o conto, sucinto por natureza, não oferecia elementos suficientes para o desenvolvimento de um longa metragem nos moldes imaginados por Stanley Kubrick. Foi diante dessa constatação que surgiu a primeira grande reviravolta em prol da futura obra prima: Kubrick entrou em contato com Clark e não só o convidou para desenvolver o roteiro em parceria com ele como, numa ousadia inédita, lhe propôs escrever um romance simultaneamente ao trabalho de roteirização conjunta.

Clark, um aventureiro e desbravador por excelência, topou o duplo desafio proposto. Nascia, naquele momento, um filme e um livro que, a despeito de guardarem similaridades intrínsecas quanto a origem, caminhariam sutilmente por trilhas distintas e instigantes: “2001: Uma Odisséia no Espaço”.

Experiência inédita no processo de junção entre a linguagem do cinema e da literatura, o filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” transborda suas exuberantes fontes criativas das mais variadas formas, seja nos intertítulos inseridos por Kubrik – “Alvorecer da Humanidade”, “Missão Júpiter”, “Júpiter e além do infinito” -, seja na talvez mais famosa elipse da história do cinema, quando do plano em que vemos um osso arremessado aos céus por um antropoide pré-histórico dar lugar a uma moderníssima nave suspensa no vácuo sideral.

Subvertendo o uso de clichês do gênero de ficção científica – o primeiro contato com seres alienígenas, as missões rumo ao desconhecido, a rebelião de máquinas computadorizadas, etc. -, “2001: Uma Odisséia no Espaço” avança para além da tradicional linguagem narrativa do cinema, inovando tanto na estética quanto na técnica cinematográfica: são destaques não só a mais perfeita representação de antropoides pré-históricos já vista na época, mas também os cenários espaciais, como as imagens de alinhamentos planetários e deslocamentos orbitáis de uma perfeição nunca antes vista, fator que contribuiu para o surgimento de especulações populares em torno da chegada do homem na Lua – para muitos, o pouso da Apollo 11 na superfície lunar não passou de uma sofisticada encenação, tendo em Kubrick o artíficie por trás das imagens mundialmente televisionadas em 20 de julho de 1969.

A música constitui outra dimensão de destaque em “2001: Uma Odisséia no Espaço”, seja no uso inusitado de temas clássicos como “Assim Falou Zaratustra”, de Richard Strauss, ou da valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss que, tal qual o filme, não logrou êxito de apreciação quando de sua primeira exibição pública, apresentada que foi por um coro masculino acompanhado por um piano tocado pelo próprio compositor. De fato, a noite de estreia do filme, que se deu em 2 de abril de 1968, em Washington, foi também um verdadeiro fiasco, com o público deixando o teatro alocado para o grande acontecimento ainda no transcorrer da exibição, o que fez com que a MGM, produtora da obra, considerasse a suspensão de entrada do filme no circuito comercial das salas de cinema.

Não obstante a estreia nada promissora, o filme acabou por surpreender e ter ampla repercussão na mídia, tornando-se um enorme sucesso e vindo a obter 4 indicações ao Oscar de 1969, tendo ganho por efeitos especiais, prêmio auferido ao próprio Stanley Kubrik, que tinha na equipe um jovem e promissor supervisor de efeitos especiais, Douglas Trumbull, futuro ganhador do Oscar por filmes como “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, “Jornada nas Estrelas: o Filme”, e “Blade Runner, o Caçador de Andróides”.

Por tudo o que representou e representa para a história do cinema, da literatura e da cultura universal, com seu ambiente estranho, instigante e multifacetado, onde o silêncio e a subjetividade imperam em face ao turbilhão de dúvidas e significados que as palavras não são capazes de traduzir, “2001: Uma Odisséia no Espaço”, obra resultante da união das mentes visionárias de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick, constitui-se, na celebração do cinquentenário de sua existência, como um clássico entre os clássicos, obra maior de seus respectivos autores em seus respectivos campos de atuação. Ou, como bem escreveu o crítico Charles Champlin em 1970, do centenário jornal “Los Angeles Times”: “O filme pelo qual os fãs de ficção científica de todas as idades e de todos os cantos do mundo imploravam (às vezes sem esperança) que fosse realizado um dia.”

*Duarte Dias é cineasta, atualmente exercendo a função de Programador e Curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Coordenador de Políticas do Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará ([email protected])