Bolaño, um detetive selvagem em busca das vísceras da América Latina

Joaquín Font, internado em uma Casa de Saúde Mental da Cidade do México, recomendava que nunca ninguém deve se dedicar a escrever literatura para desesperados. Essa é uma das vozes de “Os Detetives Selvagens”, de Roberto Bolaño, escritor que não seguiu o conselho desse seu personagem ensandecido.

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*

Roberto Bolaño - ilustração Olavo Costa - Olavo Costa

Nascido no Chile, Bolaño foi para o México aos 15 anos e só voltou em 1973, já aos 20, motivado pela chegada de Salvador Allende à presidência. Preso pelo golpe militar que levou Pinochet ao poder, ele só escapou porque, por sorte, um dos militares que guardavam o campo de prisioneiros era seu amigo de infância. Bolaño viveu no México e em vários países da Europa, tendo trabalhado como jardineiro, guarda de camping e vendedor de bijuterias. Quando passou a viver de literatura entregava um cartão de visitas com seu nome e afazeres: “poeta e vagabundo”.

Morto muito jovem, com apenas 50 anos, aguardando um transplante de fígado que não aconteceu, produziu nos últimos seis anos de vida o que há de mais substancial em uma obra que soma 12 romances, três livros de contos e quatro de poemas. Há muitos títulos de sua autoria nas livrarias, produto de uma onda editorial que está publicando até manuscritos inconclusos. Mas quem quiser começar a ler Bolaño deve ir direto para “Os Detetives Selvagens”, obra que é o último grande romance da literatura latino-americana no século 20 e ponte necessária entre a geração do “boom” e os jovens autores do continente.

Bolaño, aliás, gostava de enfatizar que não só nada devia aos escritores do “boom” (que ele lia e admirava) como via a literatura latino-americana de sua geração diante de um abismo que não poderia ser atravessado com a ajuda da tradição dos pais e dos avós: “se queremos atravessá-lo, é preciso inventar, é preciso audácia”, disse. Sua grande obra, “Os Detetives Selvagens” (1998), é resultado dessa capacidade criativa que reinventa o continente a partir da perspectiva de uma nova geração. Não é exagerado dizer, como fazem muitos críticos, que esse livro é um divisor de águas tanto quanto já o foi o “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez.

A começar pela forma. Trata-se de um relato não linear, feito a partir de diários, cartas, depoimentos e anotações das dezenas de personagens, de vários países, cada uma delas com sua própria subjetividade e candente lirismo. Como se o leitor estivesse não diante de um romance, mas de um compilado de anotações diligentemente organizado por um investigador preocupado em reunir evidências que expliquem um fato ou um fenômeno. A história em si, que o “detetive/leitor” busca com avidez e até impaciência, se choca a todo o tempo contra a memória dos narradores, confusa em sua melancolia, sonhos, pesadelos, alucinações, reflexões políticas e filosóficas, crítica mordaz, paixão e loucura.

A primeira e a terceira partes do livro são compostas por anotações do diário de Garcia Madero, um estudante de Direito. Frustrado por não ter a permissão dos tios que o criaram para matricular-se em Letras, ele passou a frequentar clubes literários e vinculou-se ao “real-visceralismo”, um novo movimento que se chocaria contra a arte de gabinete e os intelectuais de boa posição.
A segunda parte é esse compilado de depoimentos no qual a polifonia narrativa indica, em sua multiplicidade, uma voz coletiva, a voz de toda uma geração de latino-americanos cujas existências foram marcadas pelas ditaduras, exílios, errância e a experiência do horror. Bolaño escreveu em certa altura: “tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração”.

Como no Aleph, de Jorge Luis Borges, o centro dessa narrativa está em todos os lugares e vozes ao mesmo tempo. A trama “principal” acaba se diluindo em uma teia de outras histórias na qual cada narrativa abre uma outra janela que, por sua vez, abre outra e outra até as infinitas possibilidades. Por vezes, o leitor se sente como a senhora Clara Cabeza, secretária de Octávio Paz e uma das “autoras” dos relatos criados por Bolaño: “as coisas tinham acontecido como tinham acontecido e se eu, que era a única testemunha, não sabia o que havia acontecido, o melhor era que continuasse na ignorância”.

Mas, claro, há uma trama principal. A história que perpassa e liga os relatos apresentados é a de dois jovens poetas, Arturo Belano (um alter ego do próprio Bolaño) e Ulises Lima. Vivendo na Cidade do México e engajados na construção de uma vanguarda artística, eles organizam os entusiastas do “real-visceralismo”.

Os dois são, a rigor, os “detetives” da história. Sua vida e seus atos são direcionados a um objetivo maior: encontrar o paradeiro e a obra da poeta Cesárea Tinajero, que teria escrito na década de 1920, sob o impacto da Revolução Mexicana, para depois perder-se nos desertos de Sonora, no norte do país. Cesárea é vista por eles como a verdadeira fundadora do “real-visceralismo”. Que nem ela, nem sua obra, tenham qualquer importância para a literatura mexicana dos compêndios universitários consultados por Belano e Lima, não é um problema (saberemos depois que, além disso, ela deixou apenas um poema).

Cesárea é para aqueles pobres e apaixonados poetas a forma de buscar algum vínculo com a vida, negado a eles a todo o tempo. Aqui, os nomes são significativos: o “Ulisses”, homérico, empreendendo uma viagem longa de volta para casa, e o “Arthur”, dos romances de cavalaria, vagando em busca da redenção. Ao fim, Ulises Lima terminará desaparecido enquanto Belano, após correr o mundo, termina embrenhando-se em uma Angola ainda devastada pela guerra. O incrível encontro entre Ulises e Octavio Paz em um parque da Cidade do México deixando frente a frente o transgressor e a encarnação da tradição é das passagens mais angustiantes de uma vida que busca selvagemente seus elos com o mundo.

O livro traz ainda uma crítica mordaz a um ambiente acadêmico e artístico eivado de preconceito de classe, mesmice e compadrio. Os “vilões” de Bolaño são os falsos intelectuais, os artistas medíocres, o ambiente contaminado de uma vida de autores que se consideram superiores ao mundo, mas que apenas tem como leitores uns aos outros. Impossível não sentir aqui os ecos da reflexão do uruguaio Angel Rama sobre a “cidade letrada” e sua umbilical relação com o poder constituído, bem como todo o universo que ela exclui de sua representação.

Bolaño tem contas a acertar. Em outro de seus livros, “Noturno do Chile”, o leitor é apresentado a passagens nas quais reuniões literárias são celebradas em mansões de Santiago em cujos porões são torturados presos políticos. “A literatura não é inocente, isso eu sei desde os 15 anos”, diz um dos personagens dos “Detetives”. Mas ela pode ser libertadora. Arturo e Ulises não se abalam porque o importante não é a literatura em si mesma, mas o que ela significa enquanto reencontro com a vida.

Uma vida deve estar à altura da literatura e não apenas fingida em convescotes elegantes mordazmente retratados. Por isso, é possível que existam escritores que não escrevem – a começar pela própria Cesárea – cuja vida em si é um monumento literário. Se a vida não for ela própria um compromisso, a literatura nunca o será. “A literatura não vale nada”, é a conclusão de Lisandro Morales, um editor amaldiçoado. Mas para os detetives selvagens, ela vale muito. Vale até o cometimento de crimes!

Em certa passagem, Belano desafia um crítico que avaliaria mal seu trabalho para um duelo. Segue-se uma luta quixotesca em uma praia espanhola, na qual defendeu-se com o sangue aquilo que se escreveu. Afinal, escrever com qualidade é “saber enfiar a cabeça no escuro, saber pular no vazio, ou seja, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso”, disse Bolaño ao receber o prêmio Rómulo Gallegos.

Com a cabeça no escuro, os narradores de Bolaño, por mais de 600 páginas, viajam em relatos que abarcam 20 anos (de 1976 a 1996) e avançam entre compêndios de história literária, livreiros enigmáticos, visitas a poetas e críticos do passado, relatos policiais, tráfico de drogas, assassinatos. Seu término inconclusivo, no coração do deserto, é um mergulho de uma geração em suas origens.

Latino-americanos condenados por uma época de horror, deslocamento e desterro não se encontrarão nos salões oficiais, covardemente cooptados, mas no âmago das criações excluídas. É um mosaico da própria América Latina que perpassa esse mosaico de narrativas construído por Bolaño, em sua busca por atravessar o abismo.

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