Despejos na Cracolândia podem ser início de gentrificação do bairro

Cerca de 200 famílias já foram removidas nesta semana em quadra onde será construído o hospital Pérola Byington. Outros 11 imóveis devem ser desocupados em breve.

despejo cracolandia - REPRODUÇÃO FACEBOOK/FÓRUM ABERTO MUNDARÉU DA LUZ

A ausência de bombas de gás lacrimogêneo e tiros de balas borracha, tão comuns em ações policiais na região denominada de Cracolândia, centro de São Paulo, não significa que o despejo de dezenas de famílias de seus lares tenha acontecido de forma tranquila na segunda-feira (16). Pelo contrário. A indignação, a tristeza e a revolta esteve presente o tempo todo no drama de quem é obrigado a deixar sua casa sem saber para onde ir. O despejo de cerca de 200 famílias de nove imóveis, localizados na quadra 36 do bairro Campos Elíseos, foi autorizado pela Justiça na última sexta-feira (13), apenas 72 horas antes de as pessoas terem que deixar suas casas.

No domingo (15), véspera do cumprimento da ordem judicial, moradores relatam que funcionários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), empresa do governo do estado vinculada à Secretaria de Habitação, coagiam as pessoas a abandonarem suas casas, ameaçando que no dia seguinte não haveria a disponibilidade de caminhão para ajudar no transporte dos pertences. A véspera do dia do despejo misturou a saída de famílias que já haviam recebido o auxílio-aluguel prometido pelo poder público com aquelas que ainda não tinham recebido o recurso ou nem sequer tinham sido cadastradas como beneficiárias.

Quando a segunda-feira amanheceu, o sentimento de desamparo só não foi maior devido à atuação de membros do Ministério Público (MP) e da Defensoria Pública, que agiram para garantir o cadastramento das famílias para receber o auxílio-aluguel (primeira parcela de R$ 1.200 e as seguintes de R$ 400) e negociar a permanência até a próxima sexta-feira (20) daquelas já cadastradas, mas que ainda não receberam o recurso. Nesta situação estão cerca de 10 famílias residentes em um prédio na esquina da Alameda Glete com a Avenida Rio Branco. Outras 100 famílias que viviam no mesmo endereço já deixaram o local.

“O processo foi muito ruim, muita pressão do estado”, afirmou Danielle Cavalcanti Klintowitz, coordenadora-geral do Instituto Pólis e integrante do Fórum Aberto Mundaréu da Luz. Segundo ela, se membros do MP e da Defensoria Pública não estivessem no local, muitas famílias teriam sido despejadas sem qualquer tipo de auxílio ou explicação. O cenário tende a se repetir com as famílias que residem em outros 11 imóveis localizados na quadra 36 e que serão despejadas em breve: alguns moradores já estão cadastrados para receber o auxílio-aluguel, muitos ainda não.

De acordo com Danielle Klintowitz, o Conselho Gestor da quadra 36 deverá manter contato com as famílias despejadas para que voltem a residir no mesmo bairro, conforme determina o Plano Diretor da cidade para as áreas que são Zona Especial de Interesse Social (Zeis), como é o caso da região da Cracolândia. “Vamos lutar por isso. É mais difícil porque muitas famílias vão se pulverizar, mas também muitas ficam na região”, diz ela, explicando que são comuns os casos de pessoas que já passaram por outras ordens de despejo e mesmo assim optam por permanecer no bairro. “A dinâmica do local é essa.”

Campos Elíseos Vivo

O despejo de cerca de 200 famílias na segunda-feira (16) aconteceu duas semanas depois do lançamento do projeto Campos Elíseos Vivo, que prevê a construção de cerca de 3.500 unidades habitacionais, espaços comerciais e equipamentos públicos nas áreas vazias e subutilizadas da área compreendida entre a Alameda Cleveland e Avenida Rio Branco, além das ruas Glete e Helvétia, incluindo trechos das alamedas Dino Bueno e Barão de Paranapiacaba. O projeto foi elaborado pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz, composto por um grupo de urbanistas, comerciantes, arquitetos, moradores, profissionais da saúde e da assistência social, historiadores, psicólogos e coletivos de cultura.

Na opinião de Danielle Klintowitz, o despejo das famílias da quadra 36 não inviabilizará totalmente o projeto, pois ele inclui também as quadras 37 e 38, estas de propriedade da prefeitura de São Paulo e com o Conselho Gestor formado e atuando desde o ano passado. A coordenadora-geral do Instituto Pólis explica que houve recentemente uma reunião com Fernando Chucre, secretário municipal de Habitação, na qual o projeto foi discutido e bem recebido em alguns aspectos, mas não em outros, como o modelo de financiamento.

Segundo Danielle, o governo municipal não abre mão de que qualquer investimento no bairro ocorra por meio de Parceria Público-Privada (PPP). Para a coordenadora do Instituto Pólis, no entanto, este modelo é um problema, pois privilegia famílias com renda superior a três salários mínimos e exclui aquelas cujo rendimento é inferior.

Para ela, a negativa da prefeitura contém aspectos ideológicos no modo de pensar as soluções habitacionais para a cidade. Na prática, afirma, o modelo de PPP usará recursos públicos para beneficiar famílias de renda superior que poderiam pagar por sua moradia, em detrimento das famílias realmente de baixa renda e vulneráveis. “O recurso vai para quem pode pagar, enquanto expulsa quem precisa e já mora ali”, afirma.

Na PPP anunciada há cerca de 15 dias pela prefeitura, consta o critério de destinar 80% dos imóveis para famílias que trabalhem no centro, mas ainda não sejam moradoras da região. Como resultado, avalia a coordenadora do Instituto Pólis, acontecerá a expulsão de quem já reside no bairro. Para ela, a ideia da prefeitura é mudar o perfil das famílias que vivem na região, um discurso de gentrificação a indicar que os mais pobres não devem permanecer na área.

“Essa regra de 80% para quem trabalha no centro, mas não mora nele, é uma regra que até não seria ruim se antes tivesse outra que acolhesse quem já mora no bairro. Então você está trazendo uma população que não precisaria receber auxílio com dinheiro público”, pondera Danielle Klintowitz.

Outro foco de discordância entre os criadores do projeto Campos Elíseos Vivo e o Executivo municipal é o conceito “chave a chave”, baseado na diretriz de que a desocupação só aconteça quando a família já tiver garantido o seu direito a outra moradia. A proposta é que tal conceito garanta soluções definitivas e não temporárias, como está ocorrendo agora por meio do auxílio-aluguel. Segundo Danielle, com os R$ 400 mensais recebidos com o auxílio, não é possível viver no bairro e, na prática, as famílias irão morar na periferia sem saber quando ou se voltarão para a região de origem. Também está sendo motivo de discordância a situação dos comerciantes despejados sem qualquer tipo de indenização de seus negócios.