Pode haver um populismo de esquerda?

O debate europeu sobre o populismo põe em questão a identidade fundamental da esquerda

Por Jacob Hamburguer

populismo

Evitado pela Casa Branca e pela mídia norte-americana de direita, aquele que foi um dos principais assessores do governo de Donald Trump, Steve Bannon recentemente buscou restabelecer sua imagem de mentor político ao embarcar em uma turnê européia. Se Bannon tivesse começado a suspeitar que a presidência de Donald Trump não era mais a vanguarda de uma virada global de extrema-direita, pelo menos ele ainda podia mostrar seu apoio aos movimentos neofascistas em todo o Velho Continente. E assim, Bannon fez discursos sobre a importância do partido xenófobo italiano La Lega, elogiou seu amigo brexiteer, Nigel Farage, e apareceu como convidado surpresa na convenção da Frente Nacional Francesa. "A onda populista não acabou", insistiu em entrevista ao jornal britânico The Spectator – "está apenas começando".

É claro que Bannon não é o único a falar de "populismo" dessa maneira. Enquanto as vozes mais influentes na corrente política principal pintam o populismo como um perigo para a sobrevivência da democracia, para outros, o populismo é a chave para o futuro da democracia. Esta última narrativa tem um apelo óbvio para figuras de extrema-direita como Bannon: os populistas de extrema direita podem frequentemente parecer a escolha política mais democrática precisamente porque muitos na classe dominante os condenam como uma ameaça existencial. E, como observou o analista Anton Jaeger, embora muitos desses movimentos de direita nunca tenham adotado valores democráticos no passado, o próprio uso do termo "populismo" contra eles os ajudou a se reinventar como defensores do "povo".

Apesar da associação da palavra com os piores elementos da direita, alguns da esquerda também abraçaram o populismo como a onda do futuro – nada mais articuladamente ou mais consistente do que a cientista política belga Chantal Mouffe. Desde os primeiros anos do governo de Margaret Thatcher, ela e seu falecido marido, o marxista argentino Ernesto Laclau, argumentavam que a centro-esquerda contemporânea perdeu o rumo. Mesmo que a virada neoliberal estivesse apenas começando a atacar as proteções sociais, criando uma força de trabalho empobrecida e precária, e enriquecendo uma oligarquia diminuta – Mouffe castigou liberais sociais da terceira via como Tony Blair e Bill Clinton por adotar uma política de “consenso” que não conseguiu dar voz ao descontentamento das pessoas. À medida que a destruição social promovida pelo neoliberalismo se intensificou ao longo dos anos, Mouffe argumentou que os partidos de centro-esquerda “despolitizados” não conseguiram fornecer uma alternativa vigorosa.

Como resultado, Mouffe acredita que estamos atualmente no meio de uma crise na qual as instituições políticas não parecem mais adequadas para expressar as demandas populares – uma crise na qual o “populismo” é a única solução. A noção de populismo de Mouffe é extraída de sua compreensão da democracia como um reino de conflito, no qual grupos adversários lutam pelo controle hegemônico da política. A política democrática não é sobre o consenso, mas sobre afirmar um "nós" contra um "eles". Mouffe afirma que a direita há muito entendeu isso, então a esquerda tem que começar pelo programa se quiser ter um futuro. Mas para Mouffe e os movimentos europeus que a reivindicaram como inspiração – incluindo o Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e a França Insubmissa na França – o populismo de esquerda é mais do que uma necessidade de sobrevivência. Se a esquerda pode conseguir construir movimentos que falam em termos de “o povo”, contra a oligarquia ou o 1%, ela está confiante de que pode não apenas derrotar os populismos racistas e xenófobos da extrema direita, mas criar uma nova política além do neoliberalismo.

As paixões e os interesses

Os argumentos de Mouffe não são indiscutíveis à esquerda. No primeiro turno da eleição do ano passado na França, um dos interlocutores freqüentes de Mouffe, Jean-Luc Mélenchon da França Insubmissa, ficou a dois pontos percentuais de eliminar a direita e a extrema direita para enfrentar Emmanuel Macron no segundo turno da eleição. Mas nas últimas semanas da campanha, o sociólogo francês Eric Fassin escreveu um pequeno, porém incisivo panfleto, conclamando a esquerda a rejeitar a estratégia populista adotada por Mélenchon. Como o subtítulo do livro de Fassin sugere, ele acredita que o populismo é, essencialmente, uma expressão de "ressentimento" e, portanto, um fenômeno da direita que não tem lugar na luta da esquerda contra o neoliberalismo e o racismo. “Existem dois tipos de colesterol, bons e ruins”, brinca Fassin, “mas, para a esquerda, não existe um bom populismo”.

Fassin compartilha muito da interpretação de Mouffe da crise democrática provocada por décadas de despolitização neoliberal (embora sua autoridade preferida, escrevendo em inglês sobre o assunto, seja Wendy Brown). Ele também não considera a idéia da política democrática como essencialmente conflituosa. Sua rejeição ao populismo de esquerda é, não obstante, uma crítica inconfundível das implicações práticas da teoria de Mouffe e Laclau.

Fassin não é mais simpático ao recente legado dos partidos social-democratas tradicionais do que Mouffe é – um panfleto anterior dele atacou o Partido Socialista francês, sob François Hollande e o primeiro ministro Manuel Valls. Mas ele acredita que Mouffe esquece que o neoliberalismo foi a criação não de "liberais sociais" como Blair e Clinton (ou Barack Obama e Emmanuel Macron), mas dos "populistas autoritários" Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Historicamente falando, ele escreveu, o populismo é “uma arma a serviço do neoliberalismo, não contra ele”.



Chantal Mouffe



Fassin não pensa que os populistas de esquerda de hoje sejam secretamente thatcheristas, nem mesmo necessariamente que suas ações servirão de base para mais ganhos neoliberais ou de direita.

Ao contrário, ele acredita que a estratégia política que Mouffe defende tem como premissa uma tentativa desesperada de ganhar para a esquerda certo tipo de eleitor de direita. Muitos movimentos populistas contemporâneos – incluindo os da esquerda – apresentam-se como tentativas de ir além da divisão entre esquerda e direita. Eles dificilmente poderiam fazer o contrário, já que o populismo busca reformular os termos da luta política como uma oposição “vertical” entre os poderosos e “o povo”, uma categoria que não pode ser plausivelmente limitada às bases tradicionais de partidos de esquerda ou direita, definidos em termos ideológicos ou sociológicos. Mouffe e seus aliados, então, não estão apenas buscando criticar as instituições tradicionais da esquerda por estarem fora de contato com o povo. Eles visam construir uma base social inteiramente nova para a esquerda, independente dos partidos, sindicatos e associações existentes, e que inclui todos os empobrecidos e alienados da política após décadas de neoliberalismo. Entre essas fileiras de descontentes, Mouffe e os políticos próximos a ela reivindicam encontrar muitos que apoiaram movimentos populistas de direita. Embora muitos eleitores de extrema direita sejam racistas sinceros, xenófobos ou neofascistas, os populistas de esquerda geralmente acreditam que é possível e necessário fornecer uma expressão alternativa e anti-racista para a raiva que essas pessoas sentem. Uma vez que, diferentemente do populismo de direita, o populismo de esquerda entende as verdadeiras fontes dessa raiva – isto é, o neoliberalismo e suas conseqüências – afirma que sua mensagem acabará se mostrando mais poderosa para aqueles que votariam em nomes como Trump, Farage e Le Pen.

Fassin afirma que esse elemento do pensamento populista de esquerda não é apenas empiricamente falso, mas também politicamente quixotesco. Ele argumenta que a visão comum dos defensores de Donald Trump como americanos "deixados para trás" pela globalização neoliberal é uma ficção. O típico eleitor de Trump não era um operário de fábrica desempregado, mas sim um homem branco de classe média ou alta.

Mas mesmo sendo factualmente verdadeiro que os eleitores de extrema direita expressaram uma rejeição ao neoliberalismo – que Fassin reconhece estar mais próximo da realidade no caso do voto brexit – ele acredita que há uma falha estrutural na estratégia populista de esquerda para conquistá-los. Como Mouffe e Laclau, ele acredita que é essencial levar em conta o papel das paixões e emoções na política. As paixões que ele identifica por trás do apoio aos movimentos de extrema direita, no entanto, são fundamentalmente irreconciliáveis com as da esquerda, populistas ou não. A extrema direita é motivada pelo que Fassin chama de “ressentimento” – em outras palavras, “a idéia de que há outros aproveitando o que é meu, [e que] se eu não estou gostando, isso é por causa deles”. Para aqueles que vêem o mundo em termos de ressentimento, continua ele, a expressão de "raiva impotente" contra esses outros indignos constitui sua própria forma de "prazer".

Para Fassin, esse ressentimento é uma característica definidora do mundo contemporâneo. Em grande parte, resultou da criação de classes relativamente privilegiadas em termos econômicos que, no entanto, não têm o que Pierre Bourdieu chamou de “capital cultural”. Membros dessas classes – retratados brilhantemente pelo romancista Michel Houellebecq em seus numerosos protagonistas brancos – sentem uma profunda insegurança, que produz uma resposta emocional violenta. Eles chegam a odiar tanto os liberais altamente educados para desfilar seu elitismo cultural e valores progressistas em seus rostos, quanto as classes desfavorecidas de que essas elites “despertadas” parecem se importar mais com elas do que com eles.

Não é um mero acidente histórico, então, que o populismo tenha desempenhado um papel fundamental na construção do neoliberalismo sob os governos de direita dos anos 80. Como uma retórica política e práxis, o populismo é inerentemente cultural, explica Fassin, o que o tornou uma ferramenta ideal para os direitistas de Reagan e Thatcher para Trump. A intenção primordial da direita nas últimas quatro ou mais décadas tem sido mobilizar as classes médias brancas, em benefício da elite neoliberal, e o populismo cultural tornou possível apresentar esse esforço como uma defesa do “povo” contra os liberais decadentes.

Fassin, portanto, rejeita a ideia populista de esquerda de que há uma base de apoiadores da extrema-direita cuja raiva pode ser desviada dos movimentos populistas racistas para os movimentos igualitários. Não há um desejo subconsciente de justiça econômica sob o voto de Donald Trump ou da Frente Nacional, apenas ressentimento em relação aos superiores culturais e inferiores raciais. Para Fassin, o populismo é simplesmente ressentimento. Os esquerdistas podem vestir suas idéias em retórica populista o quanto quiserem – eles podem, por exemplo, personalizar sua crítica ao neoliberalismo denunciando membros da “oligarquia” e sua cosmovisão cultural. Mas Fassin insiste que, na medida em que a esquerda opta por seguir esse caminho, sacrifica idéias e métodos propriamente esquerdistas por uma retórica de guerra cultural que se origina na extrema direita, mas nunca pode satisfazer os ressentimentos e inseguranças que a extrema direita nutre.

Em seu próprio livro, Mouffe não menciona Fassin pelo nome, mas responde a algumas de suas críticas. Reconhecendo que os outros podem não estar tão dispostos a abandonar grande parte do legado histórico da esquerda, por exemplo. Mouffe distingue entre as instituições da Esquerda e seus valores. Embora o populismo de esquerda deva questionar radicalmente o primeiro, explica, ele deve se agarrar ao segundo se quiser permanecer distinto do populismo de direita. Mais importante, Mouffe esclarece que, contrariamente à acusação de Fassin, ela não acredita que o populismo de extrema direita seja um movimento de resistência contra o neoliberalismo, nem nega o racismo sincero de muitos de seus adeptos ou o sofrimento que pode causar. Ainda assim, ela se dobra, sustentando que a extrema direita de hoje é de fato uma reação autêntica contra as formas de “pós-democracia” que o neoliberalismo ajudou a provocar, se não uma reação contra o próprio neoliberalismo. Há o que ela chama de um "núcleo democrático" nas demandas dos populistas de extrema direita, que deixou os populistas se esforçarem para "orientar … para objetivos igualitários".

Embora em alguns aspectos Fassin e Mouffe possam ter mais em comum do que se poderia admitir, sua divergência sobre o grau de porosidade entre a esquerda e a direita é crucial. A esse respeito, a crítica de Fassin ajuda a identificar o que é tão novo sobre o populismo para a esquerda contemporânea – mas também por que talvez não seja a salvação que seus partidários acreditam ser.

Os defensores do populismo de esquerda acreditam que, nas "pós-democracias" neoliberais de hoje, as estratégias populistas e a retórica fornecem o único caminho para uma política de esquerda bem-sucedida. Embora Mouffe tenha feito mais do que qualquer um para fornecer argumentos consistentes para essa posição, ela tem a tendência de inverter seu próprio raciocínio. Ao ler o último livro de Mouffe, percebe-se que para ela, se algum movimento tiver sucesso em conquistar uma posição à esquerda do liberalismo social dominante, deve ser um movimento populista de esquerda. Isso resulta em algumas alegações peculiares. Por exemplo, no início de Para um populismo de esquerda, Mouffe afirma claramente que os partidos social-democratas estabelecidos "se tornaram muito profundamente integrados dentro da formação hegemônica neoliberal" para representar uma alternativa de esquerda autêntica ao neoliberalismo. Mas durante todo o resto do livro, ela continua elogiando o populismo de Jeremy Corbyn, o líder de esquerda do partido de Tony Blair. E apesar do fato de Bernie Sanders ter escolhido concorrer em 2016 como democrata e mais tarde feito campanha para Hillary Clinton, aprendemos que ele também é "claramente" um populista de esquerda.

Mas, quanto aos movimentos continentais que se alinharam com as idéias de Mouffe, está longe de claro que compartilham uma estratégia comum com Corbyn e Sanders (que são, eles mesmos, pouco idênticos um ao outro). Fassin ajuda a esclarecer a importante diferença entre essas figuras anglófonas – embora a insurgência juvenil de Kevin Kühnert dentro do Partido Social-Democrata Alemão pudesse ser adicionada à lista – e os movimentos de esquerda explicitamente populistas em países como Espanha e França. Não é apenas que Sanders e Corbyn trabalhem com e dentro de partidos estabelecidos; Ambos os líderes procuraram mover esses partidos para a esquerda, fornecendo uma mensagem de esquerda atualizada que pode mobilizar inequivocamente as bases de esquerda. É claro que essas bases mudam com o tempo: as campanhas bem-sucedidas não se esquivam de abraçar novos eleitorados nem se deixam ficar excessivamente ligadas aos blocos de votação que perderam. Assim, se Fassin tem mais admiração pelo que a esquerda está fazendo do outro lado do Canal da Mancha e do Atlântico, pode ser devido ao fato de Corbyn e Sanders serem simplesmente mais eficazes em identificar quais eleitores estão do seu lado, chegando até eles, e oferecendo-lhes o que eles querem. Talvez eles não sejam tanto populistas quanto meramente bons políticos – melhores, pelo menos, do que os centristas em seus partidos.

Movimentos como o Podemos e o França Insubmissa, por outro lado, estabelecem um objetivo muito mais ambicioso. Seguindo a noção de Mouffe de substituir a divisão de esquerda e direita por uma oposição entre o povo e as elites, priorizam a conquista de causas de esquerda, eleitores cuja orientação pode ser fundamentalmente de direita. Embora tais tentativas populistas de superar as definições tradicionais de esquerda e direita possam não ficar sem seus modestos sucessos, Fassin sugere que a esquerda talvez não precise romper tão radicalmente com suas instituições tradicionais e bases sociológicas. Quer dizer, pode ser possível abarcar algumas das idéias filosóficas de Mouffe e Laclau – a natureza conflituosa da democracia, o papel das formações hegemônicas na política – sem abraçar o populismo e todos os seus descuidos.

Populistas de esquerda como Mouffe têm um relato convincente de como alguém como Steve Bannon pode representar um defensor das pessoas comuns. Mas o pequeno livro de Fassin sugere que, para encontrar uma saída para esse estado de coisas, a esquerda pode não estar em tão terrível necessidade de novas idéias, que precisa procurar novos apoiadores entre aqueles que acreditam nela.