Direitos Humanos x Direitos de bandido 

As provas e testemunhos falam que os assassinos da vereadora Marielle Franco emparelharam um carro ao lado do veículo onde ela estava e dispararam contra a sua cabeça e contra o motorista. Ao mesmo tempo, as notícias indicam os seus executores: dias antes, a brava Marielle fizera uma postagem no Twitter reclamando da ação dos PMs em Acari, no Rio de Janeiro. “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre!”, disse.

Urariano Mota*

"O 41º batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens”, completava Marielle em seu post.
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O assassinato da militante feminista e vereadora Marielle Franco admite mais de uma interpretação. A primeira delas, e mais evidente, é que não foi um crime somente contra uma representante da população negra e favelada de outro estado. Não. É um crime que fere toda a gente, em razão do grau de fascismo, deboche e costumeira impunidade nas execuções contra pessoas, no Rio, no Recife, em São Paulo ou em qualquer outra cidade brasileira. A sua execução fere no sentido do poeta John Donne: “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. Por isso não perguntes jamais por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Em um sentido de outra poesia, digamos, há repercussões mais práticas, porque comerciais. Mais de 50 deputados do Parlamento Europeu pediram na quinta-feira a suspensão imediata das negociações para um acordo comercial entre União Europeia e Mercosul por conta do assassinato da vereadora Marielle Franco. “A defesa das populações oprimidas e discriminadas deve ser uma prioridade para a União Europeia. O assassinato de Marielle Franco pretende amedrontar os defensores dos direitos humanos, assim como influir nas eleições deste ano”. A proposta se completou com um pedido para que a Comissão Europeia, poder Executivo da União Europeia, “suspenda as negociações comerciais, de forma imediata” com o Mercosul, “exigindo do Brasil uma investigação independente, rápida e exaustiva que permita alcançar a verdade e a justiça”.

A segunda interpretação é que recuamos em respeito aos direitos humanos no Brasil. Na fase da redemocratização, junto ao escritor e jornalista Marco Albertim e ao sempre ativo jornalista Ruy Sarinho, tivemos um programa na Rádio Tamandaré chamado Violência Zero. No estúdio, sentíamos a então a disputa de ideias na sociedade recifense entre punir sem medida e o direito à justiça. Ainda que sem método científico, pelos telefonemas dos ouvintes notávamos que a divisão entre os mais bárbaros e civilizados era quase meio a meio. Vocês leram bem, era meio a meio, e muito nos escandalizávamos. Quem podia adivinhar o que viria?

Naquele tempo do Violência Zero no rádio, ainda não sofríamos o massacre das imagens repetidas na televisão, nem estávamos num momento de crescimento da direita no congresso. A luta era pelo alargamento dos limites da democracia. Havíamos saído de uma ditadura, mas a dominação ainda não vinha dos deputados e senadores mais afoitos contra os direitos humanos. Antes, as insinuações do “só vai matando” ficavam restritas aos guetos dos programas policiais no ar.

Hoje, a violência e a barbárie crescem, do congresso à opinião publicada, que despudorada exibe o seu baixo nível de civilização em hordas, em matilhas. Com pouca pesquisa, vemos que a vereadora Marielle Franco é morta pela segunda vez em comentários do gênero, ou antigênero:

“Meus sinceros sentimentos aos assassinos que, com certeza, são vítimas desta sociedade opressora…."

Triste e lamentável, moça jovem e bonita. Certamente foi ação de bandidos que, aliás, os direitos humanos insistem em defender…

Denunciou a PM que a protegia e foi morta por bandidos a quem ela mesma defendia. Morreu como viveu”.

E basta, não é? Melhor buscar o conforto da eterna poesia. Eu comecei com um poeta e termino com dois. Da professora e poeta Virgínia Leal, copio de uma postagem sua no Face:

“Por todos que morreram por balas dirigidas
Por todos que morreram por balas
Por todos que morreram por
Por todos que morreram
Por todos que
Por todos
Por”

E do poeta Alberto da Cunha Melo, que teve a obra completa publicada há pouco, cito:

“RITUAL DO ESPANCAMENTO
Espancado para aprender
a espancar e ser espancado,
espancado em nome de Deus
ou de um jarro quebrado,
espancado para falar e calar
o próprio espancamento.
Espancado para aprender
que os homens aprendem
espancando e sendo espancados,
espancado para dizer
que não foi espancado,
espancado para morrer
pensando que o mundo
está povoado
de espancados que espancam
e espancadores espancados”.
Que tempos.

Publicado originalmente no Diario de Pernambuco edição de 19/03/2018.

(*) Urariano Mota é escritor e jornalista.  É autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa juventude”. Filiou-se, recentemente, ao PCdoB de Pernambuco.