Trump coloca a CIA no comando e a sombra da guerra surge no horizonte

O ditador concebido por Garcia Márquez em “O Outono do Patriarca” deu um único conselho a seu filho: “nunca, absolutamente nunca, emita uma ordem sem ter certeza de que ela será de fato cumprida”. Desrespeitar esse mandamento é, nas palavras do ditador, o único erro que alguém com poder de comando não pode cometer jamais.

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*

Tainan Rocha - Tainan Rocha

Donald Trump, completando 14 meses à frente do governo dos Estados Unidos, faz uma incomum substituição na Secretaria de Estado visando a, dentre outras questões, corrigir as muitas vezes em que ordenou sem ser obedecido. E isso é um sinal de que tudo pode ficar ainda pior.

Rex Tillerson, até então secretário de Estado, foi dispensado via Twitter logo após retornar de um giro por países africanos. Só algumas horas depois do anúncio público Trump lhe telefonou para comunicar a decisão. Mesmo para um presidente com métodos inusuais, tratou-se de uma grande descortesia. Humilhado, o até então poderoso chefe das relações exteriores dos EUA fez um pronunciamento em que agradece a todos, menos ao seu presidente. Uma fratura exposta no núcleo duro do poder da maior potência militar do planeta.

Para seu lugar, Trump designou Mike Pompeo, diretor da CIA. Se a decisão for confirmada pelo Senado, será a primeira vez que um chefe da espionagem (“y otras cosistas más”, tão conhecidas por nós, latino-americanos) comandará também a diplomacia.

Tão incomum quanto a forma da dispensa de Tillerson e o pouco tempo que permaneceu em um cargo geralmente estável era sua relação com Trump. Em geral, sempre que o presidente abusava das palavras, o secretário aparecia na sequência com um “não é bem assim”. Na questão das ameaças à Venezuela, por exemplo, Tillerson procurou colocar panos quentes quando Trump disse, com todas as letras, que os EUA consideravam a possibilidade de um ataque militar ao país para derrubar seu governo.

E não foi só nessa vez que a falta de rumos na política externa norte-americana ficou expressa na relação entre o presidente e seu secretário. Quando Trump anunciou o reconhecimento de Jerusalém como capital israelense, surpreendendo até Israel, Tillerson recomendou moderação. Mais recentemente, o presidente afirmou que lutaria contra a renovação do acordo assinado entre EUA e Irã ainda no governo Obama, mas Tillerson operou com outros membros do governo e do Congresso para manter o acordo.

No episódio do agravamento das tensões no Oriente Médio, no qual Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein e Egito romperam relações com o Catar (um entreposto norte-americano a vigiar os vizinhos aliados), Tillerson, apoiado também no Pentágono, conteve a posição de Trump, que desejava apoiar o isolamento. Último ato, o presidente mudou radicalmente sua posição sobre a Coréia do Norte e propôs um encontro com Kim Jong-un sem sequer consultar a Secretaria de Estado, informada da decisão por meio da imprensa.

Em outubro do ano passado, num episódio que mostra como decaíram as lideranças norte-americanas (quem achar que não, basta comparar com a seriedade de chineses e russos), Tillerson chamou Trump de idiota, em reunião com outros assessores. A resposta do presidente foi uma afirmação – feita à imprensa – de que seu “QI” seria mais elevado que o de seu secretário. É assim que entre uma ameaça e outra contra países inteiros, os “falcões” estão envolvidos em discussões colegiais.

Ou seja, Trump tinha um secretário de estado que não estava alinhado com ele. Isso não quer dizer quer Tillerson, ex-presidente da Exxon Mobil, seja um pacifista imbuído de sentimentos humanitários. Pelo contrário: sua recente viagem pela América do Sul nos mostra a natureza da sua política. Mas, quer sim dizer que Trump, isolado em seu próprio governo, buscará cada vez mais apoio na ultradireita. O novo escolhido para o cargo de secretário de Estado é a mais recente evidência disso. Não à toa, seu anúncio foi reverenciado pelo “Breitbart News”, voz noticiosa da extrema-direita norte-americana.

Antes de assumir a chefia da CIA, Mike Pompeo estava entre as mais proeminentes lideranças do Tea Party no Congresso norte-americano. Defendia uma postura agressiva dos EUA nas relações internacionais e combatia a participação nos acordos sobre o clima. Se opôs à assinatura do acordo com o Irã e, já ocupando a CIA, definiu aquele país como um “império pernicioso” em luta para expandir sua influência (e isso vindo da boca de um diretor da CIA…). Tem gosto por afirmações fortes e vagas como “sejamos implacáveis” e “esmaguemos nossos inimigos”, como disse em passagem pelo Texas, no ano passado. Ou seja, uma verborragia um tanto inconsequente, muito ao estilo de Trump.

É verdade que “estilo” às vezes quer dizer pouco. Nós aqui no Brasil vimos a postura diplomática de Celso Amorim levando adiante a firme defesa dos interesses brasileiros. Por outro lado, vimos também um Itamaraty nas mãos de José Serra e Aloysio Nunes, carrancudos e falando grosso (com a Venezuela…), enquanto conduziam uma política extremamente cordial com os países ricos. Nos Estados Unidos, Henry Kissinger, um cortês professor de filosofia, foi talvez o mais duro secretário de Estado. Por sua vez, Hillary Clinton, sob Obama, com sorrisos nos lábios conduziu uma política externa belicosa que elevou os gastos militares dos EUA a patamares inéditos.

Se a retórica de Pompeo se converterá em uma diplomacia ainda mais agressiva por parte dos EUA, é algo a se confirmar. Há muito jogo de cena. No conflito com a Coréia do Norte, por exemplo, os meses de ameaças e agressões verbais parecem, contraditóriamente aos anúncios, ter chegado a um inédito encontro entre os presidentes dos dois países (uma enorme vitória diplomática de Kim-Jun un). De todo modo, a posição enfática de Pompeo sobre o Irã, aliada à oposição de Trump à renovação do acordo, trazem fortes e renovados ventos de guerra.

Trata-se de um momento em que uma Washington ferida pelo fiasco de sua política na Guerra da Síria procura recuperar protagonismo no Golfo Pérsico. Até o final de abril, a capital norte-americana receberá a visita do príncipe Salman, governante de fato da Árabia Saudita, para conversas bilaterais. Na pauta, estarão o Irã, a Síria e uma possível cúpula com governantes do Golfo Pérsico. Esses movimentos se dão no esteio da escalada das tensões entre Israel e Irã, desde fevereiro passado quando, em um episódio mal explicado, um caça israelense foi abatido na Síria em resposta à derrubada de um drone iraniano. Se Pompeo e Trump quiserem mesmo a guerra, não lhes faltarão pretextos.

Para a América Latina, a notícia tampouco é boa. Pompeo fala sem restrições sobre sua simpatia pelas políticas de “mudança de governo” (“regime change”) aplicadas pela CIA. No ano passado, ele enalteceu publicamente a atuação do serviço secreto na busca pela derrubada do governo de Nicolás Maduro, alegando coisas como a presença de agentes iranianos e do Hezbollah na Venezuela. Em um ano de eleições importantes no continente, é de se esperar que a visão e os métodos da CIA agora abarquem ainda mais a atuação externa norte-americana.

Já na disputa interna que tomou conta de Washington, Trump vai, aos poucos, mais à vontade no cargo, assumindo as rédeas de seu governo. Até então, o poder na Casa Branca passava por uma tríade capaz de anular o presidente: Tillerson, John Kelly (Chefe de Gabinete) e Jim Mattis (Secretário da Defesa), sendo os dois últimos generais da reserva, ambos “marines”. Um senador republicano, Bob Corker, presidente do poderoso comitê de relações exteriores do Senado norte-americano, chegou a dizer que os três eram as pessoas que separavam os EUA do caos.

Agora, Trump terá um secretário mais próximo de si e esse “equilíbrio” poderá ser rompido. Mike Pompeo na Secretaria de Estado é uma indicação de que o “America First” é mesmo a resposta violenta de um gigante acuado e temeroso ante um mundo que se redefine.