Ao contrário do Brasil, China tem projeto de desenvolvimento

Ao menos uma lição o Brasil tem a aprender com a brilhante trajetória econômica da China: “Os chineses têm um projeto nacional, um projeto de desenvolvimento, de industrialização, exatamente o que a gente não tem. A China de hoje é o resultado de decisões políticas, de planejamento, da decisão de crescer, de expandir e de distribuir a renda. É isso o que está faltando para o Brasil.”

valéria ribeiro

Esse ponto de vista sintetiza o enfoque adotado pela economista Valéria Ribeiro, professora no Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), entrevistada no programa Geopolítica, da TV247, que vai ao ar semanalmente pela internet.

Ao discorrer sobre “a ascensão da China como superpotência econômica e militar”, tema também da disciplina que ela está ministrando aos estudantes da UFABC no presente período letivo, Valéria assinalou o contraste entre o Brasil do golpismo e o rumo adotado pela liderança chinesa na atualidade. “A China está apresentando ao mundo um modelo que tem na sua base um projeto de nação e de construção autônoma do desenvolvimento, que é infelizmente o que o Brasil não tem”, disse. “A gente está perdendo o pouco que tinha, não temos mais nem o respeito à nossa soberania.”

Como exemplo dessas visões discrepantes entre os dois países, a especialista citou o tema da chamada “austeridade” nas finanças públicas. “Lá você tem uma política que tem como foco o investimento, o incremento da produção, enquanto aqui no Brasil a ideia é de que enxugar, cortar os gastos, parar de investir é a saída. Na China é o contrário, é uma política voltada para a expansão, existe um projeto nacional.”

Entrevistada por Igor Fuser, também professor de Relações Internacionais na UFABC, e pelo jornalista Leonardo Stoppa, da TV 247, Valéria Ribeiro encarou temas espinhosos, como a definição do regime chinês: socialista ou capitalista? “A China representa um esforço de implantação de um socialismo que é pensado dentro do contexto histórico do século 21, algo diferente que o senso comum entende como capitalismo ou socialismo”, explicou. “O que existe lá é um processo, uma tentativa de, por meio de métodos capitalistas, transformar a sociedade, enriquecer o país e depois distribuir a renda para que de fato as pessoas tenham direitos iguais.”

Ela admite a dificuldade, compartilhada pela maior parte dos analistas, de entender com clareza o intrincado processo histórico do gigante asiático, mas ao mesmo tempo ressalta: “Em uma coisa existe consenso: a China não está seguindo o neoliberalismo do Consenso de Washington. Diferentemente da maioria dos países da América Latina, ela foi por um caminho próprio, num movimento totalmente contrário à liberalização, à financeirização da economia. Na China o papel do Estado é muito forte no que diz respeito aos investimentos e à regulação econômica. Há na atualidade também um grande esforço de ampliação dos direitos sociais, apesar das grandes desigualdades que persistem no país.”

Doutora em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a professora Valéria Ribeiro chamou atenção para as mudanças que estão ocorrendo sob a gestão do atual presidente chinês, Xi Jinping. “A China já não é mais aquele país que exporta apenas produtos baratos, de baixo valor agregado, e que cresce a partir do investimento em grandes obras de infraestrutura. Hoje aquele país está vivendo um novo ciclo de crescimento. Está diminuindo a dependência do investimento pesado e crescendo o investimento em bens de consumo, de tal maneira que os chineses possam comprar cada vez mais, tenham poder aquisitivo para gastar e criar uma economia interna muito dinâmica. Ao lado disso há um forte investimento em desenvolvimento tecnológico, em inovação, e com isso se está construindo uma indústria muito moderna.”

A velha ideia de que o crescimento chinês se sustenta com base na superexploração dos trabalhadores, segundo a professora, já não corresponde mais à realidade. “Os salários na China tem aumentado muito”, informou. “Muitas empresas que estavam na China estão se mudando para outros países da Ásia, como o Vietnã, em busca de mão de obra barata. Na China está em curso uma política de elevação salarial a fim de melhorar as condições de vida da população.”

A entrevista com Valéria Ribeiro ocorreu numa semana em que a China ocupa lugar de destaque no noticiário internacional, com a decisão de eliminar o limite de dois mandatos de cinco anos para o exercício do cargo de presidente do país. Com isso, o atual líder, Xi Jinping, poderá permanecer no comando após 2023, ficando a princípio bloqueada a disputa política para a escolha do seu sucessor. A professora interpreta o fato como uma tentativa de restabelecer a centralização do poder na China. Nas últimas duas décadas, explicou, “houve uma certa descentralização, e isso significou abrir espaço para outros interesses dentro do Partido Comunista, interesses de uma burguesia que é forte na China e que também se faz presente no partido”.

A medida, segundo ela, fortalece tremendamente a liderança de Xi e seu esforço de reafirmar a opção do país pelo socialismo nas condições do século 21. “Essa me parece uma resposta chinesa quanto a qualquer possibilidade de uma possível entrada em uma democracia de tipo ocidental. Isso não está nos planos, está descartado qualquer tipo de mudança de regime”.