Dona Cornélia Lavadeira

 Era o ano de 1986. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Central Geral dos Trabalhadores (CGT) convocaram a greve geral que mobilizou 25 milhões de trabalhadores e trabalhadoras de todo o Brasil, dentre elas, dona Cornélia da Conceição, da província petroleira de São Mateus, norte capixaba.

 *Claudio Machado

Né não, titio!

Conhecida também como Cornélia lavadeira, ela foi uma das fundadoras do “Movimento das Lavadeiras e Empregadas Domésticas” de São Mateus, sendo também uma das líderes do Movimento das Mulheres e do Movimento Negro do município, que faz parte da região quilombola de Sapê do Norte, juntamente com Conceição da Barra.

Naquele início do mês de dezembro de 1986, os movimentos e entidades dos trabalhadores e trabalhadoras do município se preparavam para organizar uma das mais importantes greves gerais da história do Brasil e Cornélia era uma das mais ativas lideranças à frente do movimento, com quem tive a honra de conviver e lutar, ainda que por um curto período.

São Mateus é uma cidade cortada pela BR 101, ainda hoje a principal via de transporte de pessoas e mercadorias do Brasil, ligando o Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. A tática definida pela coordenação local da greve era interromper o trânsito da 101, com a concentração de grevistas na altura dos dois trevos existentes ao longo da via, parando, dessa forma, a circulação de boa parte da economia nacional.

Assim fizemos e às 3 da madrugada do dia 12, lá estávamos nós divididos em duas “brigadas de comando”, sendo que da que eu fazia parte, também estava a destemida Cornélia lavadeira, gritando palavras de ordem, de incentivo e reforçando a construção da barricada que dava maior segurança protetiva aos manifestantes, o que nos permitiu, por algumas horas,  interromper  o trânsito em ambas direções.

Lá pelas cinco e meia da manhã, dia clareando, chega o pelotão de choque da PM e partem direto na direção dos coordenadores de uma das brigadas grevistas, detendo a mim, dona Cornélia e mais uns três ativistas.

O governo federal havia decretado feriado naquele dia, na tentativa de desmobilizar a greve. Ao chegarmos na delegacia, o policial escrivão começou a arengar com Cornélia lavadeira, numa abordagem machista e desrespeitosa, usando o tratamento de “titia” à líder negra,  dizendo que ela deveria estar em casa cuidando da família. “Titia, a senhora deveria estar em casa. O que é que a senhora esta fazendo no meio dessa confusão, titia? A senhora deveria estar em casa, cuidando da família, do marido, fazendo uma comidinha gostosa, né titia?”. Cornélia, que estava em pé na frente da mesa do escrivão, se curvou um pouco para se aproximar e desferindo um olhar fulminante disparou “né não, titio!”. O sujeito levou um susto, pois não contava com aquela reação corajosa de uma mulher simples, mas desassombrada e ciente de seus direitos e de seu papel como liderança do movimento popular.

Cornélia já se foi, mas o “né não, titio!” ecoa até hoje para mim como um grito de e de insubmissão da luta pela emancipação das mulheres. Jamais esquecerei.

Cornélia da Conceição, presente!