É possível se desenvolver só exportando produtos primários?

Canadá, Austrália e Brasil exportam primários, mas só os primeiros avançaram. Um trabalho explica as razões.

Por Carlos Drummond

Minério de ferro - exportação

O aumento de 2,5% na produção industrial do ano passado após três anos de variações negativas (-3,2% em 2014, -8,3% em 2015 e -6,4% em 2016) reavivou o debate entre os que pensam a economia só a curto prazo e aqueles que consideram imprescindível orientar as decisões do dia a dia por uma estratégia de desenvolvimento.

O primeiro grupo vê naquele crescimento da manufatura um sinal de recuperação provavelmente generalizada da economia a evidenciar, segundo dizem, que políticas específicas para o setor são desnecessárias, tendo em vista as virtudes da economia deixada ao sabor das forças de mercado. O segundo grupo preocupa-se com o fôlego curto dos avanços da manufatura sem sustentação em políticas industrial, de juros e de câmbio, capazes de resgatar o papel do setor no desenvolvimento, o que requer a ação do Estado como contraponto ao mercado.

Este grupo alerta, além disso, para a desindustrialização desenfreada do Brasil, com a dizimação do setor de bens intermediários, entre outros. Vários subgrupos com múltiplos matizes compõem ambas as facções, mas a descrição acima contempla algumas das manifestações mais conhecidas de cada uma delas.

No grupo com visão de curto prazo, alguns apontam o Canadá e a Austrália, grandes produtores de commodities tanto quanto o Brasil, como provas de que é perfeitamente possível atingir o desenvolvimento sem indústria relevante, apenas a partir das chamadas “vantagens comparativas” de cada país.

(De acordo com a teoria do livre-comércio, todo país tem uma vantagem comparativa em certos produtos na medida em que é relativamente melhor na produção de algumas coisas do que de outras.) Um trabalho divulgado em dezembro refuta esse argumento, ao demonstrar que Canadá e Austrália, embora tenham nos produtos primários as suas principais fontes de riqueza, contam com setores industriais sofisticados e a junção dos dois segmentos é o que explica suas inserções no grupo das nações avançadas.

Vencedor do Prêmio Associação Brasileira de Desenvolvimento e Banco Interamericano de Desenvolvimento, o artigo “Estrutura produtiva e crescimento: Uma análise comparativa de Brasil, Austrália e Canadá”, elaborado por Larissa Vieira Resende e João Prates Romero, da Universidade Federal de Minas Gerais, busca uma explicação “para a grande disparidade de renda per capita observada entre Brasil, Canadá e Austrália, todos eles países majoritariamente primário-exportadores”.

Larissa Resende é aluna do curso de Relações Econômicas Internacionais e Romero, professor do Departamento de Economia, mestre pela UFMG e doutor pela Universidade de Cambridge.

“O artigo é muito bom e merecedor do prêmio, pois se trata de uma análise com rigor metodológico para entender por que, apesar de Brasil, Austrália e Canadá terem estruturas de exportações semelhantes, com elevada concentração nos bens primários e nas manufaturas baseadas em produtos primários, eles apresentam trajetórias divergentes em termos de renda per capita. Fazendo uso de três indicadores – o índice de complexidade econômica de Hidalgo e Hausmann, o índice de qualidade das exportações de Feenstra e Romalis e o índice de desenvolvimento estrutural de Romero e outros –, o estudo conclui que a predominância de bens primários na pauta de exportações não é incompatível com níveis elevados de renda per capita, desde que haja diversificação da estrutura produtiva, como é o caso do Canadá e da Austrália, mas não o do Brasil”, analisa Luiz Fernando de Paula, professor titular de Economia Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e integrante da comissão julgadora.

Com isso, diz, os autores se contrapõem à tese de que a exploração de vantagens comparativas de um país garante por si só o desenvolvimento econômico, pois isso depende do grau de sofisticação e diversificação da estrutura produtiva. Ao mesmo tempo, relativizam a tese estruturalista de que o desenvolvimento econômico e o crescimento do PIB per capita são determinados pela mudança da estrutura produtiva dos países rumo à manufatura. “Assim, eles aprofundam uma comparação que tem sido feita sempre de forma superficial.

A mensagem é clara: o Brasil pode e deve tirar proveito de suas vantagens comparativas, mas precisa ao mesmo tempo diversificar e sofisticar sua estrutura produtiva. E isso não é feito com simples liberalização de mercado, mas com políticas públicas inteligentes”, conclui o professor da Uerj.

“O maior legado que o Prêmio ABDE-BID nos traz é a oportunidade de aprofundar os debates para que possamos avançar naquilo que o Brasil mais precisa: desenvolvimento”, chama atenção Milton Luiz de Melo Santos, presidente da ABDE.

Os autores do trabalho elaborado com dados desde 1962 buscaram uma explicação para o paradoxo contido na comparação a seguir. Em 2009, produtos primários e manufaturados baseados em produtos primários tiveram participação de 79% nas exportações da Austrália, 62% nas do Brasil e 46% nas do Canadá.

Os três países têm níveis de complexidade muito baixos, ocupando as posições 82ª (Austrália), 54ª (Brasil) e 39ª (Canadá) no ranking da complexidade econômica. Austrália e Canadá estão, porém, entre os 20 países com maior nível de renda per capita, enquanto o Brasil ocupa posição muito inferior. “Quando observadas suas trajetórias econômicas desde 1960, percebe-se como os PIBs per capita se dividem, sendo as rendas australiana e canadense quase cinco vezes maiores que a brasileira”, sublinham.

Iniciando com poucas indústrias competitivas nos setores de baixa, média e alta tecnologia, prosseguem, a economia brasileira chegou a ter estrutura muito semelhante à canadense em 1990, com cerca de 30 indústrias competitivas de produtos primários, 60 de manufaturas baseadas em produtos primários, 35 de baixa tecnologia, 30 de média tecnologia e três de alta tecnologia.

As indústrias competitivas do Canadá permaneceram relativamente estáveis ao longo do período, com leve elevação dos produtos primários e das manufaturas baseadas em produtos primários a partir de 1990. O mesmo ocorreu na Austrália, ressaltando-se, contudo, o menor número de indústrias competitivas no setor de média tecnologia, em torno de dez na maior parte do período.

Vale notar, chamam atenção os autores, que, a partir de 1995, o Brasil e o Canadá permaneceram com um total de indústrias competitivas em torno de 160, enquanto na Austrália o número de indústrias competitivas estabilizou-se em torno de 140. A partir desse ponto, o Brasil distancia-se da rota de Canadá e Austrália.

A principal contribuição desse estudo, de acordo com seus autores, é indicar que a especialização na exportação de produtos primários e manufaturas baseadas em produtos primários é compatível, sim, com elevados níveis de renda per capita e desenvolvimento produtivo, mas é indispensável promover também uma diversificação produtiva rumo a setores industriais de alta tecnologia, apesar da atividade primário-exportadora.

“Ao contrário do que pode parecer, analisando a composição das exportações de Canadá e Austrália, constata-se que esses países possuem estrutura produtiva consideravelmente desenvolvida, o que não se observa em relação ao Brasil”, analisam.

O problema central do desenvolvimento, explicam, é como garantir o constante aumento da produtividade do trabalho e sua distribuição para o conjunto da sociedade. Os aumentos da produtividade resultam de duas fontes: a transferência de trabalhadores para setores mais produtivos, caso da indústria, e a adoção de técnicas produtivas mais avançadas, incluindo-se a incorporação de capital ou de inovações de produto ou processo. Em ambos, o mecanismo básico do desenvolvimento é a acumulação de capital, isto é, o modo fundamental de elevação da produtividade é a realização de investimentos.

Fosse o subdesenvolvimento só uma etapa no processo de desenvolvimento, prosseguem, a transformação em um país desenvolvido não seria tão difícil e lenta quanto é. O problema é que o subdesenvolvimento é algo muito mais complexo.

Trata-se de uma condição gerada pela dinâmica de comércio entre, de um lado, países desenvolvidos que ocupam posição central no sistema de produção e comércio internacional e, de outro lado, países subdesenvolvidos que ocupam posição periférica nesse sistema. É isso o que ensina a teoria estruturalista latino-americana, desenvolvida na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Na abordagem da Cepal denominada “centro-periferia”, a existência de economias desenvolvidas acarreta a imposição de uma dinâmica que tende a ampliar o desenvolvimento das economias já desenvolvidas ou centrais e a perpetuar o atraso produtivo das economias subdesenvolvidas ou periféricas.

A diferença essencial, portanto, entre a relação centro-periferia e as caracterizações simplificadoras e equivocadas de país avançado e atrasado, desenvolvido e subdesenvolvido é que, no caso centro-periferia, considera-se que existe uma dinâmica própria na qual “a desigualdade é inerente ao desenvolvimento do sistema em seu conjunto”.

Assim, não só os ganhos médios crescem mais lentamente na periferia, mas a própria condição periférica e sua interação com o centro tendem a reforçar e a reproduzir continuamente essa condição. Um circuito sem fim, é possível acrescentar, se o lado prejudicado não buscar rompê-lo.