"The Post": a história não foi bem assim

Jornalista Ben H. Bagdikian, personagem coadjuvante em The Post, tem uma versão diferente da contada no filme; Bagdikian é autor do livro O Monopólio da Mídia, que será lançado em abril pela editora Veneta

Por Rogério de Campos *

the post cinema - Foto: Divulgação

“Era uma madrugada quente de junho em 1971, e eu estava em um lúgubre quarto de hotel de terceira categoria, em Boston. O ar condicionado não estava funcionando. O calor era sufocante. E as duas camas do quarto estavam cobertas com milhares de folhas dos altamente secretos Papéis do Pentágono.

Por todo o país, a Casa Branca e o FBI tentavam evitar que os documentos caíssem nas mãos erradas e, naquele momento, as mãos erradas eram as minhas. Se eu tivesse sucesso no que estava planejando, eles iriam para a primeira página do The Washington Post, onde eu trabalhava.

Os Papéis do Pentágono já eram notícia quente. Por anos, a história secreta do envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã esteve trancada nos cofres do governo. Naquele momento, os papéis haviam escapado e começaram a aparecer no New York Times. Estavam lá, impressas, as mensagens e ordens secretas que começavam a mostrar os anos de mentira e fantasia do Estado a respeito da tragédia contínua que era a Guerra do Vietnã.

E agora havia um elemento novo, um precedente perigoso, na história, que por si só era alarmante: a censura. Dois dias antes, a Casa Branca havia conseguido que um tribunal em Nova York proibisse o Times de continuar a publicar os mesmos documentos que eu estava olhando agora nas duas camas.

Enquanto eu analisava aquele material no quarto de motel, a guerra seguia matando um número apavorante de americanos e vietnamitas. Mais e mais cidadãos estavam tomando as ruas do país, frustrados pelos delírios, enganações e arrogância das autoridades. Os papéis naquelas camas confirmavam as suspeitas de milhões de cidadãos de que por anos o governo dos Estados Unidos tinha mantido uma política que sabiam estar condenada, e tinha mentido sistematicamente a respeito disso”.

O jornalista Ben H. Bagdikian (1920-2016) começa Double Vision, seu livro de memórias, falando do caso dos Papéis do Pentágono, que também é o tema do filme The Post, do Spielberg, em cartaz nos cinemas, indicado a dois Oscar.

Em 1971, quando era editor de política do The Washington Post, Bagdikian conseguiu os documentos secretos, brigou, ameaçou pedir demissão e lutou como podia para que a direção do jornal aceitasse publicar o material. Foi um episódio que marcou a história da imprensa norte-americana no século XX.

Quando um dos advogados da empresa insistiu que o jornal deveria antes assegurar na Justiça o direito de publicar as denúncias, Bagdikian respondeu com uma frase que depois virou um slogan da liberdade de imprensa: “A maneira de assegurar o direito de publicar, é publicar” (“The way to assert the right to publish is to publish”). No filme, quem diz a frase é o Ben Bradlee, editor-executivo e chefe de Bagdikian no Post.

Naquela época, Bagdikian já era um jornalista de bastante prestígio e diversos prêmios no currículo, incluindo um Pulitzer. Também era bem respeitado como analista da imprensa. Foi o primeiro a falar sobre a necessidade do ombudsman na imprensa nos Estados Unidos, ainda nos anos 1950. Seu livro The Information Machines: Their Impact on Men and the Media (1971) é um estudo pioneiro a respeito dos efeitos das novas tecnologias no jornalismo[1]. E seu O Monopólio da Mídia, de 1983, é um dos mais importantes livros sobre o jornalismo contemporâneo, aclamado como um divisor de águas no estudo da Imprensa. Nele, o autor analisa o crescente poder das corporações no controle do fluxo de informação e a concentração de mídia nos Estados Unidos.

Em Double Vision, Bagdikian relativiza um pouco a importância dele ter conseguido os Papéis do Pentágono. Como diz em seu texto, o The New York Times chegou antes. Os títulos dos capítulos do livro que tratam do assunto revelam como encara a coisa: “A Not-So-Secret Mission” e “And 5.400 Pages of Not-So-Secret ‘Secrets’”. A grande batalha foi a de fazer aquilo ser publicado. É verdade que Katharine Graham, dona do jornal, se viu pressionada no caso, porque sua empresa iniciara dois dias antes o processo de entrada na Bolsa de Valores. Uma ação judicial ou retaliação do governo Nixon poderia fazer com que os investidores voltassem atrás. Havia uma cláusula no contrato que permitia a desistência no caso de alguma “catástrofe”. Mas havia também a possibilidade de outro tipo de catástrofe, que era a da demissão de Bagdikian por causa daquilo motivar um pedido de demissão coletiva dos principais nomes da redação ou uma greve. Seria a desmoralização de Bradlee e da imagem de grande jornal independente que o Post estava lutando a duras penas para conseguir. Isso talvez pudesse ser uma razão até mais forte para os investidores desistirem.

Não sou desses que odeiam o Spielberg e penso que Alejandro Jodorowsky exagera quando diz que quer matá-lo porque “Spielberg está matando o cinema”. Até acho que, mesmo depois de Encurralado (1971), quando entrou em decadência, Spielberg conseguiu fazer alguns bons filmes. E The Post tem a Meryl Streep. Mas descobri, assistindo ao filme, que ele tem a Meryl Streep parecendo senhora aflita com uma controvérsia a respeito da organização da festa de Natal. Duvido muito que Katharine Graham fosse aquela figura frágil que o filme mostra, alguém que se retirava da mesa ao final do jantar em sua própria casa para os homens poderem falar de assuntos sérios. Duvido que Abe Rosenthal (à época editor do New York Times) falaria com um assistente a respeito de problemas sigilosos de uma reportagem tão importante quanto a dos Papéis do Pentágono em um almoço com a própria Graham, como se tivesse esquecido que ela era dona do principal jornal concorrente.

Entendo: Spielberg quer mostrar o mágico empoderamento daquela mulher. Mas Graham era uma das pessoas mais ricas dos Estados Unidos, e, em 1971, já bem empoderada. No ano seguinte já estava na lista da Fortunecomo um dos 500 principais CEOs do país. Em um meio tão machista como é o das altas cúpulas dos negócios e da imprensa e de todas as áreas onde existem altas cúpulas, Graham deve ter engolido uma enorme quantidade de sapos. Mas dirigia o jornal desde 1963. Começara a trabalhar lá em 1938. Antes de disso, incentivada por seu pai, formara-se em jornalismo na Universidade de Chicago e trabalhara como repórter em um jornal de San Francisco. Sua mãe também foi jornalista. Uma das melhores amigas de Graham era a jornalista Meg Greenfield, uma das mais poderosas de Washington (representada pela atriz Carrie Coon em The Post,). O jornal era de Katharine Graham e todos sabiam disso. E, se não soubessem, eram informados na hora. Vários dos textos laudatórios escritos sobre ela falam de sua franqueza, que envolvia o uso de alguns palavrões. Em geral, as pessoas usam o termo “franqueza” para descrever a grosseria e truculência de gente poderosa.

Quanto a Ben Bradlee, não deu a sorte que teve no filme Todos os Homens do Presidente (1976). Ao invés de Jason Robards, quem agora o incorpora é Tom Hanks, que, aparentemente, foi ao seu guarda roupa escolher a máscara que usaria no filme e chegou à conclusão que a de um treinador de baseball servia muito bem. Bastaria uns pequenos ajustes e ficaria perfeita para fazer o veterano jornalista outsider, orgulhoso de sua pupila Katherine Graham. Outsider? A família de Bradlee, os Crowninshield, é uma das mais tradicionais na elite dos Estados Unidos e cheia de embaixadores, almirantes e ministros. O termo que se usa para falar de famílias como os Crowninshield é Boston Brahmin, os Brâmanes de Boston, ou seja, a casta superior.

No filme, tem o momento em que Bradlee confessa que talvez tenha havido algum pequeno deslize dos princípios jornalísticos na sua relação com o amigo John F. Kennedy (a cena acontece enquanto a trilha sonora do John Williams nos avisa que é hora de nos emocionarmos). Um jornalista muito ético angustiado com a questão do conflito de interesses… Bem, para começar, vários indícios sugerem que por alguns anos Ben Bradlee acumulou suas funções de jornalista com a de prestador de serviços para a CIA[3] E sua relação com Kennedy era bem íntima mesmo. Um exemplo: sua cunhada, Mary Pinchot Meyer, foi amante do presidente democrata. Em 1964, quando Meyer foi misteriosamente assassinada com dois tiros à queima roupa, Bradlee e alguns agentes da CIA vasculharam o estúdio dela para eliminar qualquer elemento comprometedor. O jornalista encontrou o diário de sua cunhada, e o entregou à agência de inteligência americana. Durante décadas isso ficou como boato, mas o jornalista acabou admitindo o fato nos anos 1990[4]. A dúvida que se tem agora é se Mary Pinchot Meyer guardava apenas segredos de Kennedy ou mais coisas: era ex-esposa de Cord Meyer, o agente da CIA que teve papel importante na Operação Mockinbird, criada para manipular a mídia nacional e estrangeira. Pinchot Meyer falava publicamente contra a CIA e andava ameaçando denunciar suposta ligação da central de inteligência com o assassinato do ex-amante presidencial. O telefone dela estava grampeado. O crime nunca foi resolvido. Enfim, seria uma pauta ótima para um editor como Bradlee.

The Post é um filme, não cabe tudo. Muita coisa tem que ser resumida. E algumas coisas precisam ser modificadas para renderem melhores cenas. Entendo. Aquela cena, por exemplo, em que há a correria para chegar à banca de jornal e ver o que estava na capa do The New York Times não tinha por que acontecer no mundo real: Bagdikian conta que o The Washington Post tinha um funcionário em Nova York encarregado de enviar uma fotocópia da capa do Times assim que ela saísse da gráfica. Em sua autobiografia, Bagdikian conta que houve uma negociação para que Daniel Ellsberg, o analista militar da Rand Corporation, topasse entregar os Papéis dos Pentágono. Ele quis a garantia de que o The Post de fato iria publicar o material. Bagdikian pediu um tempo para consultar a direção, então voltou ao jornal e falou com Eugene Patterson, que era o managing editor. Em seguida, falou com Bradlee que ficou bem excitado com a notícia: “Amigo, se você conseguir a coisa e isso não estiver no jornal do dia seguinte, o The Washington Post terá que arrumar um novo editor executivo”. Por isso, Bagdikian ficou ainda mais exasperado depois, quando, no enfrentamento dos dois contra os advogados do jornal, Bradlee vacilou e quase desistiu.

O jornalista conta também como foi o dia seguinte à publicação. Na redação, o clima era de celebração e alguém colocou um grande cartaz com a frase dele: “A maneira de assegurar o direito de publicar, é publicar”. Mas logo que chegou, o jornalista foi chamado à sala de Bradlee. “Quando entrei, Katharine Graham virou-se para mim, com o rosto sombrio: ‘Em que confusão nos meteu?’”. Ela não estava brincando. Não havia celebração no escritório de Bradlee. A reunião foi tensa e desagradável, com a certeza da iminente retaliação da Casa Branca. Imagino que Katharine tinha também ouvido algo de seus amigos íntimos, como Robert McNamara, o ex-Secretário de Defesa”. Bagdikian voltou para sua mesa e se preparou para ser o bode expiatório. Mas, no dia seguinte, o clima era outro: Graham estava feliz pelas congratulações que recebera de outros jornais e editores.

Como todos os filmes de Hollywood, The Post precisa de heróis “que funcionem”. Além de não ter o pedigree dos brâmanes Graham e Bradlee (sequer era americano de nascença: era um imigrante armênio), Bagdikian não faz um retrato muito lisonjeiro das grandes corporações de mídia – uma delas, aliás, dona do filme – em seu O Monopólio da Mídia. Ninguém pode negar a coragem de Graham em autorizar a publicação dos Papéis do Pentágono. E Bradlee, que foi um grande editor, fez bonito ao lutar pelas reportagens feitas por seus subordinados. Ainda assim, o detalhe de atribuir a Bradlee a famosa frase de Bagdikian me parece revelador da tentativa de tirar a ralé trabalhadora da foto comemorativa desse grande momento da história da imprensa.