The square: entre o instinto e a civilidade

Imagine um quadrado que delimite um pequeno espaço no chão. Dentro de seus contornos, funcionaria uma espécie de santuário, onde as pessoas passariam a compartilhar direitos e deveres iguais. Essa é a proposta da instalação de arte que está no centro de The square, filme sueco que venceu a Palma de Ouro no último Festival de Cannes e que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Aqui, ganhou um subtítulo, A arte da discórdia, que parece meio fora de lugar.

Por Fabiane Secches*

The Square - Divulgação

A mensagem que acompanha a exposição, embora pareça utópica, também é familiar. Afinada com o tal santuário, teríamos a Declaração dos Direitos Humanos e também a Constituição Federal do Brasil que, em seu Art. 5º, determina: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

O diretor Ruben Östlund defende a importância de criar essas zonas de experimentação, onde poderíamos ter vislumbres de novas formas de contratos sociais. Em entrevistas, o cineasta repete a analogia que faz entre seu santuário quadrado e a faixa de pedestres: mais do que uma mera sinalização, essa área significaria um pacto de confiança em que o pedestre atravessa sem temer que os carros avancem sobre ele, e os motoristas, por sua vez, devem estar atentos aos movimentos dos passantes. Não sei se a comparação convence. Já o filme, é brilhante.

Christian (Claes Bang) é o curador-chefe de um museu de arte contemporânea que está se preparando para receber a exibição The square. Se, de um lado, se identifica com os valores propagados pelo santuário, também revela fissuras por onde escapam contradições. Logo no início, é entrevistado por uma jornalista americana, Anne (Elizabeth Moss) e lhe diz que o maior desafio na administração do museu é o dinheiro. Christian fala da dificuldade em competir com os colecionadores particulares, que gastam mais em uma tarde do que eles gastariam em um ano inteiro. Defende, entusiasmado, a importância de tornar a arte contemporânea acessível a todos.

Em seguida, Anne lê um texto cheio de jargões obscuros publicado por ele em seu site e lhe pede para explicar o que quis dizer. A princípio, nem o próprio Christian parece ser capaz de traduzir o hermetismo daquelas linhas. A ambivalência está posta de partida: como a arte poderia se tornar acessível se está apoiada em um discurso indecifrável até para “especialistas”?

Depois, quando a carteira e o celular de Christian são furtados nas ruas de Estocolmo, ele é novamente confrontado com a distância entre seus valores e suas atitudes. A sequência do assalto é uma das muitas boas soluções visuais do filme. Östlund compõe a passagem utilizando recursos que poderiam estar em uma peça de teatro, em um espetáculo de dança ou em uma performance artística. Formalmente, o filme também dialoga com seu conteúdo temático.

A partir do furto, as convicções do protagonista são postas à prova. Um de seus funcionários localiza o endereço por GPS e sugere que Christian escreva um bilhete ameaçando o ladrão e lhe dando um ultimato para que devolva seus bens. O GPS, no entanto, é impreciso. É possível identificar o edifício onde o celular está, mas não em qual apartamento. O funcionário propõe a distribuição de cópias do recado para todos que vivem ali. Seguindo sua lógica, quem tivesse cometido o crime vestiria a carapuça e devolveria os itens roubados. Christian acredita que, além do celular e da carteira, levaram também as abotoaduras que teriam sido de seu avô, acessório bastante simbólico para a caracterização do personagem, denunciando a ancestralidade de sua posição.

Digamos que o plano não sai como o esperado e ele precisa enfrentar complicações morais e éticas que desafiam sua visão de mundo, e de si mesmo, como progressista. Em seu filme anterior, Força maior (2014), Östlund já havia investigado os embates travados entre interesses individuais e coletivos. O longa conta a história de um homem que passa férias com a família em um resort de ski nos Alpes Franceses. Ao presenciar uma falsa avalanche, o protagonista tem uma reação que coloca em xeque sua posição como pai e marido. O cineasta parece investigar essa fina camada de civilidade humana que nos separa de nossos instintos mais egoístas.

“Um dos maiores dilemas para mim é que, como seres humanos, estamos lidando com nossos instintos e nossas necessidades ao mesmo tempo em que nos vemos como pessoas racionais e civilizadas. O lado civilizado de nossas personalidades governa nosso self ético, a nossa tendência de demonstrar respeito e confiança aos outros. Mas quando estamos lidando com nossos instintos e somos colocados contra a parede, existe um conflito entre esses dois lados de nossas personalidades. Esse conflito está no centro de ser humano. […] Geralmente, pensamos algo como: ‘Eu quero ser bom, mas não é fácil ser bom. Faço muitas coisas ruins, mas sei que deveria me comportar diferente’”, disse Östlund em entrevista recente para a revista Cineaste.

Nesse sentido, o cineasta parece concordar com o que diz Freud em Mal-estar na civilização: parte de nossos problemas, de nosso mal-estar, vem do fato de que, para viver em grupo, precisamos restringir impulsos e desejos individuais, amputando parte significativa de nossa agressividade.

Östlund parece sair em defesa de seus protagonistas: a hipocrisia de Christian não seria fruto de sofisma, mas de um conflito humano profundo comum a todos nós. Quanto à acidez com que olha para a arte contemporânea, os comentários do cineasta são ambivalentes. Se, de um lado, faz confissões que tornam algumas das melhores cenas do filme ainda mais divertidas, de outro, é um entusiasta: a exposição retratada no filme teve sua origem em uma obra que o próprio cineasta organizou, anos antes, em um museu de Värnamo, no sul da Suécia. A instalação teria sido montada tanto no museu quanto na praça da cidade e, posteriormente, em outras três localidades.

Em uma das entrevistas, Östlund chega a brincar sugerindo que o filme seria apenas uma estratégia de conteúdo para a divulgação da exposição.

No entanto, quando direciona seu olhar mordaz para a arte, The square fica ainda mais interessante, rendendo cenas fabulosas que provavelmente farão história no cinema. Um exemplo é a sequência em que um artista (Terry Notary) apresenta uma performance em que encarna um macaco de forma assustadoramente verossímil. O entorno acentua a graça e o contraste: a apresentação ocorre durante um jantar no museu, com a presença dos mecenas endinheirados vestidos em traje de gala, enquanto as mesas estão postas com pompa. Quando o homem-macaco entra no salão e perturba a ordem vigente, radicalizando a atuação, o desconforto dos personagens se torna nosso desconforto também, causando risos de constrangimento e interjeições de desespero. A cena é um primor cinematográfico e teria inspiração na performance de um artista russo, Oleg Kulik, que representou um cachorro em um museu sueco. Uma placa avisava: “cuidado com o cão” e o artista acabou mordendo algumas pessoas que se aproximaram demais, incluindo a filha do curador-chefe. Kulik teria lhe machucado a perna tão gravemente que foi preciso chamar a polícia.

Outra ótima paródia é a do incidente com os montes de cascalhos, em que parte da obra é varrida por engano. Östlund se diverte em lembrar de um caso ocorrido na Itália em que bitucas de cigarros e taças de champanhe de uma exposição foram jogados no lixo. Os desenhos do misterioso chimpanzé que vive com Anne provavelmente são uma referência a um episódio verídico, que mais parece uma anedota: em 1964, quatro pinturas assinadas por Pierre Brassau, um desconhecido artista francês, foram exibidas em um evento de arte na Suécia. As obras de Brassau conquistaram os críticos da época, que escreveram notas elogiosas nos jornais. Apenas um crítico discordou, declarando que “apenas um macaco poderia ter feito isso”. Como se revelou depois, ele tinha razão: Pierre Brassau era, na verdade, um macaco chamado Peter.

Já o parágrafo ininteligível lido no início do filme teria saído diretamente de um texto escrito por um professor da Universidade de Gothenburg, onde Östlund dá aulas de cinema. Existem outras ótimas cenas que merecem menção de honra: o grito do chef de cozinha no museu; a disputa entre Christian e Anne pela camisinha e, depois, a conversa diante da instalação de cadeiras; o garoto que vocifera ameaças e reivindica reparação, prometendo trazer o caos para a vida do curador caso não se retrate; a triste cena de Christian revirando o mar de lixo em seu edifício; a dança das meninas na quadra da escola, com o pai assistindo apavorado (o pacto de confiança entre as garotas, dentro daquele outro quadrado simbólico, talvez seja uma analogia mais poderosa do que o da faixa de pedestres).

O caráter mercadológico da arte contemporânea também incomoda o diretor, que se queixa do fato de que as feiras de arte parecem ter se tornado lojas de decoração para casas de pessoas ricas. Quem assistiu ao documentário Blurred lines: inside the art world(2017) vai encontrar em The square um subtexto afinado.

Mas Östlund argumenta que o mundo da arte é apenas um pano de fundo para as questões que pretende examinar em The square, como o ski teria sido em Força maior. Em seus pronunciamentos, faz críticas ao mundo individualista em que vivemos e, embora soe otimista, parece flertar com épocas anteriores de maneira quase nostálgica. Defende a importância da implementação de políticas coletivas em contraponto ao mito do self-made man, levantando bandeira contra o modo de vida neoliberal. Seus filmes, no entanto, são ainda mais valiosos do que seus comentários políticos, pois conseguem apontar contradições sem moralismos. É o caso dos sem-tetos e pedintes em The square, que estão por toda parte. Não dá para dizer que o filme aborda a questão com sutileza, mas certamente não recorre a saídas fáceis, deixando o espectador apenas com o incômodo, muito mais fértil do que dedos apontados em riste.

Assista ao trailer: