Olívia Santana: "Volte pra favela"

Foi este o brado insultuoso, semelhante ao autoritarismo dos capitães do mato, que a mim foi dirigido quando participava de um evento da Federação Baiana de Automobilismo, no dia 4 de fevereiro passado, no Hotel Catussaba.

Olívia Santana - Foto: Ascom/Setre-BA

O destempero, extravasado como um impulso incontido, revelava o sentimento profundo daquela senhora, acompanhada e apoiada por sua amiga, irritada por estar dividindo com uma negra assumida e resolvida com a sua autoestima, o amplo espaço de um hotel de “elite”, como ela disse.

Realmente nasci na favela, como a maioria das negras e negros do nosso país. Sou filha de uma doméstica que me criou com amor e admirável esforço, dando-me o pouco, que também era o melhor que ela tinha.

Senti, cedo, o injusto e desproporcional peso de ser mulher, negra e pobre. Percebi que o estudo e a luta me seriam indispensáveis na peleja da vida. Depois vi que a minha luta era a de outras e outros, semelhantes, negras e negros com histórias que se cruzam, que têm sonhos, apesar de toda a opressão e teimam em buscar um futuro.

É espantoso como o racismo espreita a população negra, interpondo barreiras, a qualquer pretexto e a toda hora, para restringir nossos passos. Age de forma grosseira, como fez a pessoa que me agrediu, no Catussaba. O Racismo forja valores, amalgama a cultura, a estética, se traduz nos critérios estabelecidos, no idioma, nas letras de músicas, nas gracinhas “inocentes”. É absorvido e naturalizado no imaginário coletivo, que legitima lugares hierarquizados, baseados na cor da pele e modulados pelo grau de mestiçagem.

Naquele dia fatídico, em Catussaba, tudo começou quando duas senhoras se dirigiram a mim e uma delas me estendeu a mão, não para cumprimentar, mas para atacar: "saia daqui! Seu lugar é na favela! ", disse e repetiu raivosa.

Não eram proprietárias do estabelecimento onde estávamos, nem brancas, nem ricas. Porém, agiam na lógica das mentes colonizadas, cultuando valores de uma classe e de um grupo étnico aos quais não pertencem.

Com sarcasmo e talvez surpresa, uma delas indagou se eu não iria chorar. Um mórbido desejo de conferir se tinha ferido a minha humanidade.

Naquele momento lembrei-me de Hitler. Ele era o oposto do que idealizava seu trágico delírio de pureza racial. Assemelhava-se mais com os judeus do que com os arianos, e nem alemão era. Distanciava-se dos seres que julgava superiores. A esquizofrenia de seu raciocínio levou ao extermínio de judeus, africanos, homossexuais, comunistas e democratas em geral.

Mentes deformadas pelo preconceito fixam-se na ideia de que o lugar original dos negros, a favela – antes era a senzala – é o seu lugar de destino, cabendo aos que daí saírem serem lembrados que estão "fora do lugar".

Estava eu ali na condição de secretária de Estado, a convite da entidade patrocinadora do evento. Mas a lógica discriminatória resiste a aceitar que posições dessa natureza sejam ocupadas por não-brancos ou não-ricos. A pele negra me reservaria, por essa lógica, um lugar de menor valor agregado. E, contudo, ninguém é favelado por obra e graça da natureza. Viver na miséria ou na pobreza é resultado de uma ordem econômica e social injusta, contra a qual deveríamos nos insurgir, em vez de legitimar.

Há em nosso país uma extrema concentração de riqueza, mais do que há em nações da Europa ou do Norte da América. Seis famílias brasileiras detêm a riqueza de 100 milhões de brasileiros.

Portanto, a maioria dos brasileiros é enxotada para a periferia e uma parte dela cai nas favelas, de onde são recrutadas as trabalhadoras domésticas, os operários da construção civil, os garis da limpeza pública, que tanto contribuem para o bem-estar de todos e das elites. "Favela ê, favela, respeite o povo que vem dela", diz um pagode baiano. Favela não pode ser um xingamento, pois já é um espaço de resistência e reinvenção de humanidades.

Lamentavelmente, um dia depois deste episódio deprimente, morreu no Rio de Janeiro, o jornalista, advogado e ex-deputado constituinte Carlos Alberto de Oliveira. Betinho ou Caó, como era conhecido, foi um baiano que batalhou pela causa antirracista. Foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes, a UNE, em 1963, e era presidente da União dos Estudantes da Bahia, a UEB, quando houve o golpe de 1964. Foi autor da emenda à Constituição que tornou o racismo crime inafiançável e da Lei 7.716/89, que regulamentou a prisão para o crime de preconceito e discriminação de raça ou cor, etnia, religião ou procedência nacional. Caó era negro, e fez história porque conquistou espaços muito além dos que lhe queriam reservar.

Nestes tempos sombrios, de avanço da intolerância, temos e devemos usar o instrumento legal que Caó nos deixou, para exigir que justiça seja feita e para que a Bahia e o Brasil avancem no sentido civilizatório.