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Descartada do jogo, a classe operária, após os 60, não vai ao paraíso

É uma trama simples, aparentemente, a de Pela Janela, primeiro longa da cineasta Caroline Leone. O filme conta a história de uma operária, perto dos 70 anos, que dedicou quase a metade da vida trabalhando em uma fábrica de reatores.

Por Matheus Pichonelli*

Pela Janela - Divulgação

Demitida após quase três décadas de serviço, ela tenta assimilar o golpe, mas não evita o quadro depressivo que se desenha na sequência. É quando, para tentar animá-la, o irmão a convida para viajar com ele até Buenos Aires.

É um contraste e tanto com um outro filme que retratou, recentemente, a vida operária em São Paulo: Corpo Elétrico. Na trama de Marcelo Caetano, os jovens que trabalham nas fábricas de confecções da capital não são exatamente absorvidos pelo ofício; pelo contrário, eles driblam o caráter opressivo de uma rotina robotizada colocando os corpos numa espécie de experimentação dionisíaca, longe dos centros de prestigio, mas também fora do alcance de julgamentos, moralidades e aprisionamento a um plano de metas meramente formal. São, antes de tudo, jovens querendo se jogar de cabeça em um mundo de possibilidades que se abre nas franjas de uma rotina aparentemente sem perspectiva. A postura libertária nas ruas e festas são quase uma bomba antimonotonia dos quartos e repartições enxutos.

Em Pela Janela, a protagonista interpretada por Magali Biff parece plenamente assimilada àquele trajeto sem cores. Não há vida naqueles corpos além da força de trabalho. Naquela rotina robotizada, que inclui as tarefas domésticas após o expediente, ela parece estar protegida, de certa forma, à enxurrada de transformações do mundo contemporâneo até que a empresa anuncia um processo de fusão a um outro grupo. A fagocitose, destino comum do capital global, é o fim da linha para ela.

Quando esta rotina se quebra, Rosália se depara com o vazio. Sem a força de trabalho, torna-se improdutiva; é como morrer estando viva. Ela experimenta, assim, o luto por algo que tem corpo e se perdeu.

Desorientada, é Rosália quem se prontifica a visitar a fábrica para saber se “estão precisando de alguma ajuda”. A inversão de papeis não precisa gritar na tela para apontar onde pesa o desamparo.

Em casa, descobrimos, então, que o parceiro com quem divide a mesa de jantar não é o marido, mas seu irmão. Zé (Cacá Amaral) é o motorista de uma família rica encarregado de levar o carrão para a filha dos patrões na capital argentina. A ideia de levar a irmã na viagem só toma forma quando o filho, abarrotado de trabalho, se nega a passar uns dias com a tia.

Sem cair nas arapucas comuns dos filmes de denúncia social, o filme desenha de maneira delicada a desarticulação dos tecidos sociais naquele lado esquecido da história. O motorista que dirige o carro do patrão, por exemplo, terá de voltar para casa de ônibus.

No banco do passageiro, é possível intuir que Rosália, pela primeira vez, se permite se deixa levar por um caminho ainda a ser desbravado. Nesse caminho, o irmão tem seus pontos de contato. Amizades, lugares conhecidos, pequenos prazeres, como tocar violão.

No caminho, uma discussão aparentemente banal e inconclusiva entre os irmãos sobre as plantações no estado do Paraná – aquilo tudo é milho? ou é soja? – parece soar como reflexo de um mundo alheio, pelo qual se atravessa mas não se tem acesso, conhecimento ou controle. O que importa?

Um dos poucos momentos de interesse aparente de Rosália é quando ela avalia o preço de um conjunto de panelas de ferro, vendidas a preços em conta numa loja à beira da estrada. O irmão avisa que não é bom carregar peso porque a volta será de ônibus. Na cena seguinte ela alisa o utensilio, como quem acaba de promover uma rebelião.

Já na Argentina, Rosália, uma mãe sem filhos, demonstra dificuldade para se comunicar com os novos (e temporários) vizinhos, mas se afeiçoa com uma jovem mãe cujo companheiro está o tempo todo fora da cena. De alguma forma elas parecem compartilhar um outro sistema de linguagem. A alegoria é uma música popular nos dois países.

Nos pontos de intersecção entre culturas aparentemente estranhas parece brotar um respiro de vitalidade. A diferença é que o movimento de Rosalina é ao encontro do desconhecido, e não o contrário.

O que faremos na volta?, ela questiona o tempo todo. Nem ela nem o público sabe se aquele movimento será a força-motriz para quebrar o circuito da melancolia sobre qual todos estão de alguma forma aprisionados.

Há um ponto de saída, porém, na janela que se apresenta ao público pela tela: o espanto dela ao ver a força das Cataratas do Iguaçu, na tríplice fronteira. A câmera posicionada naquela passarela aparentemente frágil lança o espectador como para dentro de um redemoinho; dali ele não sairá sem se molhar até a alma.

Assista ao trailer: