As concessões de Temer e Macri no acordo de livre comércio com UE

 Documentos vazados revelam o teor da negociação entre o Mercosul e a União Europeia para um acordo de livre-comércio. Entre eles se incluem os capítulos que vinham sendo elaborados de forma secreta, alguns relacionados aos setores de serviços, investimentos, e comércio eletrônico, que podem restringir e/ou distorcer, de forma inédita na região, a capacidade de regulação econômica e financeira dos países do bloco.

Por Jorge Marchini*

Temer e Macri - Beto Barata / PR

Através de redes sociais foi possível conhecer o vazamento de 19 textos das negociações confidenciais entre a União Europeia (UE) e os governos do Mercosul (com sua formação original, incluindo Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, sem a participação da Venezuela, suspensa de forma controversa, apesar de que poderia ter enorme significado para sua economia e sociedade) para alcançar de forma imediata um tratado de liberalização comercial e financeira (TLC).

Doze documentos nunca haviam sido divulgados, e portanto não eram de conhecimento público. Entre eles se incluem os capítulos que vinham sendo elaborados de forma secreta, alguns deles relacionados aos setores de serviços, investimentos, e comércio eletrônico, que podem restringir e/ou distorcer, de forma inédita na região, a capacidade de regulação econômica e financeira dos países do bloco.

Essa tem sido a intenção manifestada pelos governos desde os últimos meses de 2017: anunciar o acordo sob essas bases, com pompa e circunstância, e logo. Com tal perspectiva de “corrida contra o relógio”, os analistas passaram a centrar suas expectativas na reunião prevista entre os presidentes da França e da Argentina, Emmanuel Macron e Mauricio Macri, que se realizaria em Paris, no dia 26.

Fontes do Ministério de Relações Exteriores da Argentina se referiam, no começo da semana, à intenção do seu presidente de superar as diferenças com relação aos temas comerciais emblemáticos (carne e biocombustíveis), causadas pela resistência europeia em oferecer uma maior abertura para as exportações do Mercosul.

“O presidente Macri está disposto a reconhecer que a Europa sofre uma grande pressão dos seus próprios setores agropecuário para flexibilizar imediatamente a entrada dos nossos produtos, e destravar as negociações em troca de obter promessas ambíguas de maior abertura no futuro, e assim `salvar sua cara´ (facesaving foi o termo utilizado) perante setores sensíveis e uma opinião pública que intui que o acordo será desvantajoso”, comentou, de forma discreta, um experiente diplomata brasileiro, conhecedor das negociações.

Desequilíbrios escancarados

Entre os vazamentos descobertos, o que mais chama a atenção é o capítulo relacionado com a solução de diferenças, já que coloca em evidência o fato de que os países do Mercosul poderiam ser forçados a ceder soberania jurídica e aceitar exigências ainda maiores que as definidas pela Europa em outros TLC´s com países periféricos.

A UE poderia, por exemplo, processar os governos do Mercosul num tribunal internacional se não cumprir o TLC. E se esse país perder a causa, a os europeus poderão elevar as taxas de importação para os produtos do Mercosul até que estes mudem as normas, políticas e ações para cumprir com a sentença. Os países do Mercosul também poderiam processar a UE através do mesmo sistema, mas é claro seria menos provável, devido ao menor grau de internacionalização, menores recursos e poder de influência de suas empresas.

Os textos do TLC vazados informalmente corresponderiam às negociações até novembro de 2017 – houve reuniões posteriores a isso –, mas são um bom exemplo da postura europeia com relação ao acordo:

a) Exigem maior liberalização para a participação das empresas europeias nas compras públicas dos países do Mercosul, inibindo uma ferramenta tradicional elementar para a promoção de novas indústrias e serviços de economias com menor grau de desenvolvimento.

b) Defendem uma maior flexibilização e menor controle das normas de origem, o que permitiria dar maior penetração, por exemplo, às muitas conhecidas grifes europeias, para poder gerar maior parte do valor de sua produção em países com baixos custos, e assim contar com as vantagens da liberalização “europeia” para sua penetração nos mercados do Sul.

c) Maior proteção da propriedade intelectual, para estender e aprofundar privilégios monopólicos, o que levaria, como já se observou repetidamente em outros acordos entre países centrais e periféricos, a um aumento substancial dos preços dos medicamentos, restringindo o desenvolvimento da indústria farmacêutica local de genéricos e limitando ainda mais o acesso à saúde, hoje já limitados pelas políticas de ajuste econômico que limitam os orçamentos públicos em saúde.

O secretismo

É inaceitável que os cidadãos do Mercosul e da União Europeia tenham que confiar nestes vazamentos para saber o que está sendo negociado pelos seus governos. Um acordo como o que está sendo planejado resultaria em mudanças estruturais, em leis, normas e políticas governamentais que perdem legitimidade ao serem negociadas de forma clandestina e na base do “tudo ou nada”. A estratégia também visa forçar os parlamentos dos respectivos países a legislar a respeito dos interesses regionais, nacionais ou setoriais sem realizar estudos prévios, sem a imprescindível deliberação sobre eventuais impactos e consequências.

Há outros caminhos para estabelecer vínculos mais estreitos comerciais e econômicos do Mercosul com o mundo. Estes devem estar baseados na ampliação e sustentabilidade das matrizes produtivas, no melhoramento social e não no “salve-se quem puder”, sem contar a superação dos abismos tecnológicos e outras assimetrias nítidas entre países com diferentes graus de desenvolvimento para um acordo harmônico e dinâmico.

Se não fora assim, o resultado será o aumento dos desequilíbrios, como é possível verificar através da experiência dos TLC´s já assinados pelos países latino-americanos com economias centrais, que foram, em seu momento, apresentados como “modelo de integração ao mundo”, e hoje mostram estatísticas, resultados económicos, financeiros e sociais crescentemente negativos.

*Jorge Marchini é economista e docente universitário argentino, além de vice-presidente da Fundação para a Integração Latino-Americana (FILA)