Brasil não pode abrir mão do papel da indústria no desenvolvimento

 Os impactos da automação do trabalho, da extinção de cargos considerados obsoletos e as novas relações trabalhistas são alguns dos principais desafios da adoção da chamada Indústria 4.0 em todo o mundo. Apesar de o Brasil estar atrás de países como Coreia do Sul, Alemanha e EUA no que diz respeito à “quarta revolução industrial”, essas são questões urgentes que se relacionam à necessidade de planejamento e investimentos públicos para a retomada do desenvolvimento.

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“A chamada Indústria 4.0 se caracteriza por conjuntos de políticas industriais que países como Alemanha e EUA fizeram, principalmente na última década, como forma de retomar sua centralidade na economia mundial”, explica Luis Fernandes, doutor em Ciência Política e professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. “Essa centralidade foi em parte perdida com a ascensão de países como a China e Coreia do Sul, que nas últimas décadas estruturaram cadeias de inovação fortemente associadas à política industrial e construção de cadeias de valor. Logo, são políticas de reação”, diz ele.

Para Fernandes, que é ex-presidente da FINEP, agência pública federal de fomento à inovação, o fator-chave que determinará o espaço do Brasil neste processo é a adoção ou não de um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de direcionar investimentos públicos na criação de cadeias reais de agregação de valor na indústria, incorporando as novas tecnologias sem tornar a indústria nacional refém de grandes corporações internacionais dos países centrais (EUA e Europa).

“A experiência internacional – China, Coreia do Sul e até os EUA – mostra que são os investimentos públicos que puxam os demais. Hoje, por outro lado, o que se vê no Brasil é a diminuição do papel das agências de financiamento, como a FINEP, e mesmo do BNDES, o contrário do que esses países fizeram para desenvolver suas políticas industriais. Não se pode abrir mão do papel da indústria como integradora do desenvolvimento nacional”, avalia o professor.

Importante destacar a dinâmica do BRICS nesse processo. Segundo Luis Fernandes, o mecanismo de cooperação que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, criado para fomentar uma alternativa à agenda econômica dos EUA e Europa, tem enfrentado dois movimentos que influenciam o contexto da Indústria 4.0.

Primeiro, a acentuação da diferença entre China e Índia, que estruturaram projetos nacionais de desenvolvimento exitosos, e os demais países. Segundo, as crises política e econômica que transformaram a política externa do Brasil.

“O peso da iniciativa BRICS na política externa brasileira caiu muito. A valorização da multipolarização do mundo mudou com Michel Temer, com o BRICS funcionando muito mais como um canal para facilitar acesso a investimentos da China do que como iniciativa geoeconômica e geopolítica. A retomada da importância do BRICS e, consequentemente, sua relevância na adoção da chamada Indústria 4.0 pelo Brasil, depende de uma redefinição política”, disse Fernandes.

Impactos no mercado de trabalho

Dados da consultoria McKinsey, divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 21 de janeiro, dão conta de 15,7 milhões de trabalhadores brasileiros afetados por esse cenário de mudanças até 2030. Relatório do Fórum Econômico Mundial de 2016, por sua vez, apontava que até o final da década 7 milhões de postos de trabalho devem ser extintos em todo o mundo decorrente da adoção da Indústria 4.0.

São empregos ligados principalmente a funções administrativas e industriais, que sofrem o maior impacto da automação proporcionada por tecnologias como a Internet das Coisas. Esses dados voltaram à agenda internacional recentemente: as transformações no mercado de trabalho são destaques na reunião deste ano do Fórum Econômico Mundial, que se iniciou no dia 23 de janeiro em Davos, na Suíça.

Para Luis Fernandes, um projeto nacional de desenvolvimento deve buscar, desde o início, políticas sociais que minimizem esse provável desemprego. “É possível compensar a perda de postos de trabalhos com criação de postos em outros setores, em cadeias reais de agregação de valor. E só haverá incorporação plena das tecnologias de ponta associadas à chamada Indústria 4.0, sem agravamento das desigualdades e da precarização de direitos, se essa incorporação implementar cadeias de valor enraizadas no próprio país”, explica ele.

Sem um projeto estruturado, as chances de as empresas nacionais conseguirem adotar a Indústria 4.0 sem causarem desemprego são mínimas. “O outro caminho é o da subalternidade às cadeias globais, subordinando a indústria nacional às grandes empresas detentoras de propriedade intelectual e que dominam o mercado”, avalia Fernandes.

Precarização e reformas

Além do desemprego, a precarização do trabalho também é um fator de risco para o Brasil. A reforma trabalhista realizada pelo Governo Federal no ano passado vinha, de acordo com seus defensores, para modernizar e adequar o Brasil às relações trabalhistas da “quarta revolução industrial”. Mas, para o ex-presidente da FINEP, trata-se de uma decisão equivocada.

“A lógica que move as reformas é criar formas de trabalho mais precárias para absorver os trabalhadores que perderão o emprego a partir da chamada Indústria 4.0, uma forma de o país ‘se adequar’ à nova realidade. Mas essa foi uma opção, não uma determinação. É possível promover a adoção e o desenvolvimento das novas tecnologias na indústria sem precarizar ou enfraquecer as relações de trabalho, sem exigir terceirização, trabalho temporário e suspensão de direitos garantidos. A própria trajetória do Brasil mostra isso: chegamos a uma situação de praticamente pleno emprego na última década sem precisar cassar direitos”, avalia.

Novamente, um projeto nacional de desenvolvimento deveria levar em consideração a intensificação da chamada “gig economy” (“economia dos bicos”) no agravamento das desigualdades sociais. Isso porque o grande impasse da Indústria 4.0, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, é justamente a tendência ao aumento da desigualdade. Uma renda básica universal é, de acordo com a organização, uma política para minimizar esse impacto.

O papel da engenharia

Apesar da expectativa de perda de postos de trabalho até o final da década, os dados do Fórum Econômico Mundial estimavam a criação de cerca de 339 mil empregos nas áreas de arquitetura e engenharia em todo o mundo. No Brasil, que enfrenta grave crise na engenharia e, desde 2014, segundo o Ministério do Trabalho, acumula 50 mil engenheiros desempregados, o dado ainda carece de vontade política para se concretizar.

“Não há futuro para a engenharia nacional fora de um projeto nacional de desenvolvimento, que viabiliza e é viabilizado pela engenharia. O que assistimos, agora, é o agravamento da ruptura democrática, com a destruição da capacidade produtiva nacional e empresas de engenharia desmontadas. O alinhamento com as grandes cadeias globais de produção não é a solução para a crise na engenharia, e sim uma miragem”, argumenta Luis Fernandes.