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Jean-Michel Basquiat, a arte da América das ruas para o mundo

“Eu sei desenhar, mas não quero”. Como o jovem artista, agora homenageado em São Paulo, conhecido por ser “a criança brilhante”, deu vida aos muros de Nova York com o seu grafite- e pouco tempo depois se tornou ícone do neoexpressionismo, levando a crítica ao racismo até as grandes galerias de arte do mundo

Por Alessandra Monterastelli *

Jean- Michel Basquiat

Nascido no dia 22 de dezembro de 1960 em Nova York, Basquiat era filho de pai haitiano e mãe com descendência porto-riquenha. O jovem Basquiat chegou, inclusive, a morar 2 anos no Porto Rico. Carregava no sangue- e na experiência- um pouco do Caribe e da África, que se juntaram aos estímulos de uma metrópole como Nova York. Um dos poucos negros no Sudeste de Manhattan, o racismo que sofreu influenciou fortemente suas obras, formando sua personalidade crítica como artista.

Durante sua adolescência mudou frequentemente de escola por não conseguir se adaptar, até não voltar mais. Falava abertamente de seu passado traumático, da violência doméstica que sofreu na infância por parte de seu pai e das crises de doença mental de sua mãe (responsável, aliás, por incentiva-lo a frequentar museus e ambientes artísticos).


"Boy and dog in a johnnypump", 1982

Fascinado por anatomia (como relembrou em matéria a CartaCapital, o crítico Jeffrey Hoffeld sustentou que uma monografia de Leonardo da Vinci publicada nos anos 1950 na Itália inspirou muitíssimo Basquiat. “O jovem artista do Brooklyn passou a usar, como Da Vinci em seus estudos, a palavra como um elemento da tela, unificando superfícies, desdobrando a espacialidade, criando formas reconhecíveis e objetos, e mesmo para desidratar as formas”), cinema e jazz (especialmente por músicos como Miles Davis, Louis Armstrong e Charlie Parker), Jean-Michel caminhava pelas ruas da cidade observando, até que começou a compor o cenário da cidade com o grafite.

Fugiu de casa e passou a morar na casa de amigos ou namoradas. Por algum tempo vendeu camisetas e cartões postais na rua até que, junto com Al Diaz, os seus grafites tornaram-se frases críticas contra a “vanguarda artística” da época (formada em sua maioria por homens brancos de classe alta; anos mais tarde, em 1985, o grupo feminista Guerrilha Girls passou a criticar a exclusão das mulheres do mundo artístico), a burguesia e a polícia, já responsável pelo alto índice de violência contra jovens negros do subúrbio. “SAMO”, sigla que frequentemente pichavam nos muros, significava “same old shit” (“a mesma merda de sempre”), e se tornou uma marca registrada de protesto pelas ruas da cidade. Os seus grafites foram principalmente espelhados pelo SoHo, um bairro cheio de galerias de arte e galeristas.


Um dos grafites "SAMO": "para aqueles como nós, que apenas toleram a civilização…"

Fez sucesso rapidamente. Em 1980 fez sua primeira exposição, e passou a ser considerado parte do neoexpressionismo devido ao abstracionismo de suas obras, compostas por críticas raciais, referências históricas e pessoais. “Nas telas, pintava fluxos de pensamentos, como rimas de um rap de improviso” descreveu o Nexo jornal em um vídeo em sua homenagem. “Uma fusão punk de neoexpressionismo e primitivismo, com cores fortes, pinceladas maníacas e rostos e corpos esqueletais. Sua arte (milhares de pinturas e desenhos), suas palavras, seu corpo, até mesmo seu cabelo, em pouco tempo passaram a integrar os próprios alicerces da cultura pop da época”, escreveu a editora de arte Katharine Brooks “as telas violentas de Basquiat faziam críticas fortes ao poder, colonialismo e conflito de classes, de modo que o espectador que realmente olhasse atentamente raramente podia passar adiante sem ficar marcado”. Basquiat chegou a dizer que 80% de sua obra era sobre raiva. Quando questionado sobre qual o motivo de sua raiva em uma entrevista, disse que havia esquecido; mas ele sabia. 

Sua paixão pelo jazz o levou a um envolvimento com a música: formou a banda Gray, na qual tocava clarinete. Basquiat passou a frequentar bairros boêmios e casas noturnas, onde conheceu e passou a ter contato direto com diversos artistas, escritores, cineastas e músicos (como Glenn O'Brien, Blondie e David Bowie). Estrelou o filme Downtown 81. Namorou Madonna por algum tempo, e tornou-se grande amigo de Andy Warhol, ícone da pop-art.


Álbum da banda Gray, da qual Basquiat fazia parte 

Basquiat continua atual. Em 2017, fez história quando um quadro seu foi vendido pelo incrível valor de US$110,5 milhões, tornando-o oficialmente o artista americano cujo trabalho alcançou o preço mais alto em um leilão de arte. Mas sua atualidade vai muito além do sucesso de venda: o seu traço foi um marco para o neoexpressionismo, e a temática de suas obras possuem críticas extremamente atuais, como o genocídio de jovens negros pelas mãos da polícia, a condenação do passado racista dos EUA e a celebração de heróis negros- temas essenciais no atual cenário norte-americano, após a ascensão de Trump e da marcha de Charlottesville, no ano passado.

Trailer do filme "Downtown 81", estrelado por Basquiat 

Percursor, fez com que essas temáticas ocupassem as paredes das galerias renomadas de NY e do mundo. Utilizando técnicas de colagem, desenho e grafitagem, a voz visual das ruas, ele inseriu política em espaços “impecáveis”, conquistando seu espaço. "[Basquiat] ajudou a dar conformação autoral a uma cultura urbana subterrânea”, como citou a CartaCapital. Hoje os muitos artistas negros (homens e mulheres)levam adiante o seu legado, continuando a luta por visibilidade. “O mundo da arte 'mainstream' precisa aceitar que há mais do que alguns poucos de nós e que há talentos reais lá fora” disse a artista Jordan Casteel em entrevista ao Gruardian.

Basquiat morreu em 1988, aos 27 anos, vítima de uma overdose de heroína.

O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) inaugurou na quinta-feira (25) uma exposição retrospectiva da carreira de Basquiat, contando com 80 de suas obras, que traduzem o legado e a influência do artista. A técnica do nova-iorquino influenciou artistas como Alex Vallauri, responsável por trazer alguns de seus procedimentos ao Brasil. Além disso, a temática e as críticas abordadas pelas criações de Basquiat são de importantíssima reflexão também aos brasileiros.


"Bird on Money", 1981


"Hollywood Africans", 1983

Em entrevista para a Exame, o curador da exposição, Pieter Tjabbes, disse: “A Nova York dos anos 80 estava em crise. Prédios abandonados, violência, epidemia de drogas, sujeira. Mas esse ambiente de degradação deu combustível para uma nova geração de artistas, que propuseram novos caminhos e ideias. O Brasil passa por algo similar, uma crise sem precedentes que pode abrir caminhos para novos modos de pensar, novas propostas”. Impossível não comparar a Nova York da época com São Paulo em muitos aspectos. “Sua obra reflete os ritmos, os sons e a vida da cidade. Ela sintetiza o discurso artístico, musical, literário e político de Nova York durante este período tão fértil” completou Tjabbes. 

Com suas influências afro-caribenhas mixadas com os estímulos sensoriais da maior metrópole dos EUA, somando-se com crítica social, profundidade emocional, vivências pessoais, e a experiência do que é ser jovem e negro no contexto americano dos anos 70, Basquiat acabou por criar, como bem descreveu Brooks, uma arte que tem a cara do que é a América.