Sentença de Moro parte de ilação abstrata, diz advogado

Com essa sentença, se o estilo sentenciante e a lógica nela exposta se tornarem modelo comum, teremos sérios agravos ao devido processo legal criminal e às liberdades.(…) Se agridem um ex-presidente que é cidadão como todos nós, poderão agredir a qualquer um, sem distinção de qualquer ordem.

Por Ruy Samuel Espíndola*

Fotomontagem Moro e Lula - Fotomontagem Vermelho. Foto Moro: Denis Ferreira Netto/Estadão Conteúdo

Comecei a ler no domingo as 238 páginas da sentença que condenou o ex-presidente Lula a nove anos e meio de prisão e terminei somente agora, terça-feira (23), 23h40m, véspera do julgamento, entre os afazeres advocatícios e os familiares. E o fiz não só pelo apreço pelo Direito Penal e o Processo Penal. O fiz por que se trata do primeiro processo em que um ex-presidente da República é julgado por alegados crimes que teria cometido em seu mandato. E por apreço à história e amor à verdade, ao bem e à liberdade, à docência e à advocacia. Também, é claro, pela ruidosa (vezes raivosa…) polêmica sobre o caso, e até pelo fato de alguns livros terem sido escritos como crítica à sentença, resolvi primeiro lê-la, para depois ler as obras ou artigos que a criticam ou as que a elogiam.

Gosto de instruir-me com todos os pontos de vista, e analisar diretamente, com meu olhar, o objeto sobre o qual deverei expressar minha opinião. Sem dar atenção a preconceitos, prevenções e juízos apodíticos.

A primeira nota é o destaque aos enfrentamentos entre defesa e juiz que marcaram as linhas da sentença. Transparece uma forte impressão negativa do julgador sobre a conduta técnica dos defensores. Nas primeiras 28 páginas de enfrentamento das preliminares, a sentença critica, recorrentemente, a defesa, “defendendo a posição do juiz”, como sendo imparcial. Isso é algo raro. Pois o juiz, em regra, apenas julga os fatos atribuídos aos réus, mas não julga a si mesmo e nem o comportamento dos defensores que com ele atuam.

A segunda é o excessivo uso de presunções, indícios e ilações despidas de concretude e especificidade nos raciocínios judiciais A impressão que o leitor técnico tem é que o ônus probatório do processo acusatório não ficou em seu devido lugar. Não acredito que quem conheça as práticas judiciais legais queira ser julgado por sentença com essas peculiaridades “involucionárias” do processo penal clássico.

A terceira é que fiquei com a impressão que as conclusões judiciais foram muito complacentes com os deveres probatórios da acusação e muito desatenta ao quanto produzido pela defesa, e muito do que diz a sentença, para condenar, se baseia naquilo que o réu e algumas pessoas disseram, sem que quaisquer deles tenha tido o ânimo de produzir prova para corroborar as teses da acusação. E mesmo as versões dos delatores, a sentença admite, que não correspondem a toda a verdade, mas as utiliza para condenar.

Quarta nota, e que creio seja mais importante a fazer, é que o presidente foi condenado por crime de corrupção passiva (art. 317- CP: Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem) e por lavagem de dinheiro decorrente de crime de corrupção passiva (Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos), pela compra de um apartamento, quando faltavam 18 meses para acabar seu segundo mandato presidencial.

A sentença admite que o ex-presidente pagou 50 prestações (quatro anos e dois meses, portanto), até setembro 2014 (não era mais presidente da República há quase 4 anos). Nessa data, teria havido a opção para todos os compradores dos distintos apartamentos a possibilidade de optarem em pagar valores novos e maiores, devido aos problemas com a incorporadora anterior, ou receber de volta tudo que fora pago. E a sentença afirma que o benefício ilegal fora ofertado e feito no ano de 2014.

Ocorre que a corrupção passiva e a lavagem com crime de corrupção passiva exigem, para que sejam realizados os seus tipos criminais, que temporalmente, a exigência de corrupção, seja feita antes de se assumir o cargo presidencial ou depois de assumi-lo, mas durante o seu exercício. O segundo ponto aqui é que deve ser recebido o dinheiro para ser praticado ato de ofício presidencial. Todavia, é fácil ver que se houve pagamento regular por 50 meses, não houve recebimento de nada indevido no mandato e não se pediu qualquer ato de ofício do presidente durante o seu último biênio presidencial.

Se houve algo depois, em 2014, de presentes “imorais” com interesse no ex-presidente, por certo, isso deveria, eventualmente, caracterizar crime de advocacia administrativa (crime de menor gravidade, e que já estaria prescrito…), ou seja, por eventual intervenção do presidente em favor da OAS no governo Dilma. Mas isso sequer foi abordado na sentença.

Assim, com todo o respeito ao julgador e a sua longa decisão condenatória, mas creio não se poder reconhecer corrupção e lavagem de dinheiro com base nos tipos penais aventados, em face da objetividade temporal e da inexistência de apontamento de ato de ofício presidencial antes do mandato ou durante seu exercício. Além disso, contrariando a dogmática penal e a jurisprudência pátria, e se servindo de opinião da jurisprudência norte-americana, a sentença afirma que não precisa haver pratica de ato de ofício (atos presidenciais), pois o benefício pode ser dado em qualquer momento, apenas na expectativa que um dia haja uma vantagem a ser prestada pelo funcionário (no caso, o ex-presidente sem presidência…). Ora, quando começou o benefício alegado já não era presidente há 4 anos e a sentença não identifica qualquer ato específico de ofício que tenha tomado o ex-presidente quando fora presidente, como dissemos.

A sentença parte da ilação abstrata e presuntiva de que se houve envio de dinheiro para o PT e sua cúpula, mesmo sem prova cabal do envolvimento direto do presidente, isso “só poderia” ser em benefício do presidente, desde sempre.

Essas conclusões, por amor à lei, ao bem e à justiça, não devem prevalecer no julgamento do dia 24. Pois estão em choque com o Direito Penal e a jurisprudência pátria. E se agridem um ex-presidente que é cidadão como todos nós, poderão agredir a qualquer um, sem distinção de qualquer ordem. E aqueles que estão torcendo pela confirmação da condenação, por que o presidente seria seu antagonista no plano ideológico, ou outra razão emotiva, lembramos, com Rui Barbosa, que quando a lei não se aplica ao nosso adversário ninguém tem segurança, pois qualquer um, pelas mesmas razões, pode ser alvo da injustiça.

Há 29 anos milito no direito penal, desde quando iniciei meu estágio na promotoria de Timbó, SC. Mas vejo que agora, com essa sentença, se o estilo sentenciante e a lógica nela exposta se tornarem modelo comum, teremos sérios agravos ao devido processo legal criminal e às liberdades. E em nossa democracia, punir sem provas cabais, indene de dúvidas, será a dominante política pública do Estado-Juiz. E aí já não seremos uma democracia… mas arremedo, ao argumento de acabarmos com a corrupção, mesmo que para isso, precisemos subverter (e/ou corromper…) o sistema de garantias penais.

*Ruy Samuel Espíndola é advogado, professor de Direito Constitucional, membro vitalício da Academia Catarinense de Letras Jurídicas e da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.