Modernização nuclear aumenta o risco de uso do arsenal

Em 2017, a Federação de Cientistas Americanos (FAS, na sigla em inglês) estimou uma redução quantitativa no arsenal nuclear mundial de 70.300, em 1986, para 14.550, no final daquele ano. A redução é apresentada como reflexo de um compromisso pelo desarmamento, entretanto, em termos qualitativos, o potencial destrutivo do arsenal existente é significativamente maior

Armas nucleares EUA - Hanna Barcyk/The New York Times

Além disso, a “modernização nuclear” promovida ainda antes e impulsionada pelo plano do presidente estadunidense Donald Trump, que recebe agora atenção da mídia internacional, eleva o alerta contra a normalização do emprego dessas armas de destruição em massa.

Apesar da significativa redução no arsenal mundial, em junho de 2016, o Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisas para a Paz (Sipri, na sigla em inglês), já estimava a desaceleração do processo de desarmamento nuclear – em termos quantitativos – que acumulou progresso na década de 1990. O instituto sueco apontava mais especificamente para os EUA e a Rússia, por serem detentores de mais de 90% do arsenal existente, acumulado no período da guerra fria, enquanto indicava que Israel, que nunca declarou nem negou ser detentor de armas nucleares, possui cerca de 80 ogivas mantidas em sigilo, não monitoradas pelas agências competentes.Após anos de discussão pelo avanço além do modesto e insuficiente Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP, em vigor desde 1970) sem compromisso real – em especial dos EUA e de aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – um Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares foi adotado por 122 países na Assembleia Geral da ONU em julho de 2017. Entretanto, sua negociação e adoção foram boicotadas por algumas potências e pelos quase 30 membros da OTAN, exceto a Holanda – que abriga ogivas estadunidenses e votou contra a adoção do documento.

Os embaixadores dos EUA, Reino Unido e França na ONU afirmaram que seus países jamais serão parte do tratado, alegando que seu texto “ignora as realidades do ambiente securitário internacional” e que a “dissuasão nuclear” foi “essencial para manter a paz” na Europa e no norte da Ásia nas últimas sete décadas – ou seja, ameaçando com a repetição da catástrofe do primeiro e único emprego das bombas atômicas, pelos EUA, que matou cerca de 210 mil japoneses em 1945.

A adoção do texto é fruto significativo de uma intensa campanha internacional pelo desarmamento – que já completa sete décadas, por exemplo, desde o Apelo de Estocolmo emitido pelo Conselho Mundial da Paz (CMP) em 1950, assinado por centenas de milhões de pessoas – e da crescente pressão neste sentido por movimentos sociais, parlamentares e personalidades – como se viu no evento promovido pela esquerda no Parlamento Europeu neste mês, em que participou a presidenta do CMP, Socorro Gomes, e diversos outros representantes de organizações de paz. Entretanto, o dito “poder nuclear” ainda é incluído na doutrina militar e no conceito estratégico dos EUA e da OTAN como instrumentos de dissuasão. Ou seja: a ameaça generalizada é a forma, alegadamente, de evitar agressões por parte de outros países.

Poder nuclear e os gastos do setor militar estadunidense

Mais recentemente, a mídia internacional tem discutido a “Revisão da Postura Nuclear” encomendada por um beligerante e irresponsável presidente Donald Trump ao seu Departamento de Defesa para sustentar a política imperialista dos EUA.

Além da alteração das ogivas, tornando-as menos potentes e, assim, mais “empregáveis”, a revisão — de acordo com o diário britânico The Guardian, que cita um antigo funcionário que teve acesso à proposta, Jon Wolfsthal, em artigo de 9 de janeiro — ainda “expande as circunstâncias em que os EUA podem usar seu arsenal nucelar para incluir uma resposta a um ataque não nuclear que cause vítimas em massa, ou que tivesse como alvo infraestrutura crítica, ou locais de comando e controle nuclear.”

Porém, a “modernização nuclear” que “facilitaria” a decisão do emprego do arsenal devido à redução do seu impacto já vinha sendo denunciada, como a contida no plano promovido no governo de Barack Obama, prevendo o gasto de USD 348 bilhões (aproximadamente R$ 1,113 trilhão, na conversão atual) entre 2015 e 2024 para este fim, de acordo com um relatório do Sipri de 2016.

Segundo a Associação de Controle de Armas (Arms Control Association), os EUA mantêm um arsenal de cerca de 1.650 ogivas nucleares estratégicas operacionais, já instaladas em mísseis balísticos intercontinentais, mísseis balísticos lançados de submarinos e bombardeiros estratégicos (a chamada “tríade estratégica”), além de cerca de 180 armas nucleares táticas em bases instaladas em cinco países europeus.

De acordo com a mesma associação, em seu mais recente relatório, publicado em janeiro de 2018, o Departamento de Orçamento do Congresso estadunidense estimava em outubro de 2017 que “os planos de gastos com as armas nucleares que o presidente Donald Trump herdou do seu predecessor custarão aos contribuintes 1,2 trilhão em dólares ajustados à inflação [aproximadamente R$ 3,8 trilhões] entre os anos fiscais de 2017 e 2046.”


Gráfico dos 15 países que mais destinaram recursos ao setor militar em 2016. Os EUA, em 1º lugar, representam 36% do gasto mundial, quase o triplo do gasto da China, em 2º lugar. Fonte: Forbes e Statista.

A conta entrará para um orçamento militar em expansão. Após discussão no Congresso, Trump conseguiu garantir um aumento de USD 12,5 bilhões para o Departamento de Defesa – embora tivesse prometido mais USD 30 bilhões. Segundo a página virtual do Departamento, portanto, Trump autorizou em dezembro de 2017 um orçamento de USD 626 bilhões (mais de R$ 2 trilhões) para a pasta, além de outros USD 66 bilhões (R$ 211 bilhões) para operações no exterior.

Em 11 de janeiro, o diário The Huffington Post divulgou o esboço ainda não aprovado a Revisão da Postura Nuclear de 2018, segundo a qual novas armas nucleares devem ser desenvolvidas com uma capacidade de impacto reduzido – para, segundo especialistas, poderem ser consideradas para uso, já que as atuais ogivas estadunidenses são tão poderosas que seu uso estaria fora de cogitação. A versão final do plano deve ser divulgada em fevereiro, mas a discussão, suscitada pela ameaça que apresenta a revisão, com a banalização do emprego de armas de destruição em massa, mostra-se cada vez mais urgente.

Segundo a FAS, também citada pelo Huffington Post, já há cerca de 1.000 ogivas de potencial reduzido no arsenal dos EUA. Um artigo do diretor do Projeto sobre Informação Nuclear da FAS, Hans Kristensen, cita o relatório de dezembro de 2016 do Conselho de Ciência da Defesa dos EUA (US Defense Science Board, em inglês), um grupo que presta consultoria para o secretário de Defesa, recomendando que o Departamento de Defesa promova “uma iniciativa nuclear mais flexível que poderia produzir, se necessário, uma opção nuclear rápida e adaptada, para uso limitado, caso as opções não nucleares ou nucleares mostrem-se insuficientes.”

“Isso envolveria”, continua Kristensen, ainda citando o relatório de 2016, “’opções de menor rendimento e primárias’ para ogivas estratégicas em mísseis balísticos de longo alcance.”

A Associação de Controle de Armas diz que o Exército dos EUA “atualizou e remodelou quase todos os seus sistemas estratégicos e táticos de lançamento e as ogivas que eles transportam para durarem muito mais do que sua vida-útil originalmente planejada e está agora nos estágios iniciais da substituição de muitos daqueles sistemas antiquados por novos sistemas. Embora existentes há décadas, essas forças modernizadas são mais capazes do que as originais e os novos sistemas incluirão atualizações adicionais das suas capacidades.”

Além disso, a associação afirma que o programa estadunidense de modernização do seu arsenal nuclear é incomparavelmente mais significativo que o de qualquer outra potência, o que também fundamenta a denúncia mundial da política imperialista de ameaça e agressão sustentada pelos sucessivos governos dos EUA e intensificada por Trump.