A racionalidade da austeridade é a ganância pelo lucro

Aqueles que acompanham a evolução da economia capitalista no Brasil tem muito o que aprender observando o impacto da austeridade na economia capitalista na Grécia. Como se sabe, essa nação europeia não conseguiu escapar das coações dessa política econômica que sacrifica a produção de mercadorias reais para salvar o capital fictício.

Por Eleutério F.S. Prado*




exploração do trabalhador, capitalismo, lucro

Pensando na economia capitalista no Brasil, aqui se vai fazer uma apresentação crítica dos impactos da política de austeridade examinando o caso recente da economia capitalista da Grécia.

Para tanto, usa-se as informações e análises encontradas num artigo dos economistas gregos Nasos Koratzanis e Christos Pierros: Acessando os impactos da austeridade na economia grega (2017). Entretanto, como esses dois autores se mantêm numa perspectiva keynesiana, eles não levam a crítica ao seu horizonte. Para ver onde o sol se põe recorre-se à perspectiva desenvolvida pelo marxista grego, John Milios, no artigo A austeridade não é irracional (2015). Mostra-se, assim, que essa política, mesmo se se apresenta como tal, não visa a recuperação da produção mercantil. Ao contrário, busca continuar extraindo o maior volume possível de mais-valor na forma dos serviços das dívidas, mesmo se isto derruba e exaure o sistema econômico e, assim, produz uma catástrofe social.

Impactos da austeridade na Grécia

Aqueles que acompanham a evolução da economia capitalista no Brasil tem muito o que aprender observando o impacto da austeridade na economia capitalista na Grécia. Ainda que não sofra os constrangimentos de uma união monetária.

Como se sabe, essa nação europeia não conseguiu escapar das coações dessa política econômica que sacrifica a produção de mercadorias reais para salvar o capital fictício. Ela lhe foi imposta pela “troika” (BCE, Comissão Europeia e FMI) a partir de 2010, quase sem recuos, mesmo quando a Grécia passou a ser governada pelo partido de esquerda radical (SYRIZA). Mesmo se já se passaram oito anos desde que se iniciaram os assim chamados “programas de ajustamento econômico”, essa nação – a sua população trabalhadora em especial – continua prisioneira de seus perversos constrangimentos.

Aqui se vai fazer uma apresentação crítica dos impactos desses “programas” com base nas informações e análises encontradas num artigo dos economistas gregos Nasos Koratzanis e Christos Pierros: Acessando os impactos da austeridade na economia grega (2017). Entretanto, como esses dois autores se mantêm numa perspectiva keynesiana, eles não levam a crítica ao seu horizonte. Para ver onde o sol se põe é preciso, por isso, recorrer à perspectiva desenvolvida pelo marxista grego, John Milios, no artigo A austeridade não é irracional (2015).

É preciso ver, de início, o modo como os economistas do sistema argumentaram para justificá-la. Eles partiram da observação empírica de que a economia grega, nos anos imediatamente anteriores, se excedera em gastos privados e públicos tomando volumosos empréstimos externos. Já em 2008, quando se inicia a crise, a dívida do governo e a dívida privada haviam atingido, cada uma delas, cerca de 100% do PIB. A dívida externa, por sua vez, chegara a 140% do PIB, colocando em risco os retornos dos créditos concedidos aos agentes econômicos gregos, públicos e privados, pelos bancos internacionais.

Os economistas do sistema analisaram o problema concentrando – se como sempre na sua aparência, isto é, no surgimento de um duplo déficit nas contas do país – e não nas fraquezas estruturais da economia grega. Evidentemente, eles tomaram esses déficits como indicadores da solvência, da capacidade de pagamento dos empréstimos contraídos no passado. Julgaram então que era preciso corrigir os déficits do governo e do comércio exterior. Assim, sonhavam acordados, o melhor dos mundos poderia voltar.

Eles visavam especialmente fazer com que a economia grega reconquistasse a capacidade de pagamento das dívidas. Entretanto, recomendaram a política de austeridade em nome de uma recuperação econômica da produção de mercadorias e, assim, do emprego e da renda. A “troika”, em consequência, passou a exigir que fosse implementada uma política que procurava cortar drasticamente os gastos do governo – e, assim, os salários reais – com a suposta finalidade de abrir espaço para o crescimento do setor privado.

Eis a lógica pressuposta nesse tipo de recomendação: a eliminação do déficit fiscal permite que o Estado reduza a absorção de recursos privados e, ao mesmo tempo, torne – se capaz de servir melhor as suas dívidas; a redução dos salários reais melhora a lucratividade do setor privado e, assim, a sua competitividade, propiciando também o incremento da exportação de mercadorias. O aperto no curto prazo, nessa perspectiva, ao balancear o sistema econômico e ao restaurar as condições de acumulação do setor privado, gera supostamente benefícios de longo prazo, pois faz com que ele se recupere e, assim, reencontre uma trajetória de crescimento autossustentado.

Essa argumentação fica analiticamente mais clara quando é apresentada com o auxílio do balanço setorial macroeconômico:

(S –I) (T –G) = (X –M).

Nessa expressão, (S –I) é o balanço do setor privado (S: poupança; I: investimento); (T –G) é o balanço do setor público (T: receita do governo; G: gasto do governo); (X –M) é balanço do setor externo (X: exportação; M: importação). Note-se agora, primeiro, que esse balanço vale qualquer que seja o nível de atividade do sistema econômico; ele retrata a restrição orçamentária a que está submetido o sistema econômico nacional como um todo. Note-se também, agora de modo crucial, que ele revela contabilmente a intrínseca interdependência dos níveis de atividade desses três setores. Por exemplo, numa economia fechada (em que X –M = 0), um superávit do setor público (T > G) requer necessariamente que exista um déficit do setor privado (S < I).

Supondo, agora, que o nível do PIB seja dado numa economia aberta, o superávit eventual do setor público (isto é, T > G) requer que ocorra crescimento do investimento (I) ou da exportação (X) ou uma elevação combinada de ambos. Pois, os níveis da poupança (S) e da importação (M) não devem se alterar quando PIB não se altera. Ora, os economistas do sistema argumentam que a austeridade produz esse resultado, mesmo se provoca uma queda temporária do PIB. Preveem que uma queda do salário real eleva a lucratividade das empresas privadas, o que propicia a elevação do investimento. O fortalecimento dessas firmas faz com que se tornem mais competitivas no comércio internacional, o que, então, traduz-se necessariamente numa elevação do nível da exportação.

Ora, aqui se observa mais uma vez como a ciência positiva tem uma tendência inerente para se transformar em mito. Os economistas do sistema afirmam que o excedente fiscal do governo reestabelece a “confiança do mercado” e que isto, apenas isto, produz uma retomada da atividade econômica. Eis que isso deve ocorrer porque decorre de uma propensão inerente ao próprio sistema econômico de se aproximar do pleno-emprego. Ora, diante desse quadro teórico, é preciso ver o que realmente aconteceu depois que as políticas de austeridade foram impostas à economia capitalista na Grécia.

Em primeiro lugar, é preciso ver que as políticas de austeridade atingiram de fato, mas aparentemente, os seus objetivos macroeconômicos. A figura 1 apresentada abaixo mostra o que ocorreu com os balanços do setor público, do setor privado e do setor externo entre 2000 e 2017. Este último (área sombreada) aparece no gráfico na forma do excedente financeiro que foi necessário, ano a ano, para cobrir os déficits na conta do comercio exterior (isto é, X – M < 0).

A economia grega, antes de 2009, cresceu puxada pela demanda e isto se reflete nos déficits gêmeos, do setor privado e do setor governo. Ora, essa forma de expansão econômica é insustentável mesmo no médio prazo. O crescimento do endividamento interno e externo encontra um limite cedo ou tarde e, nesse momento, sobrevêm uma crise que obrigará a uma mudança de rumo.

No caso da Grécia quem determinou o novo rumo –contenção rígida dos gastos –foram os credores externos sob a cobertura institucional da troika. Sob o impacto da crise de 2008, o setor privado passa a ter superávit já em 2009, mas o setor público apenas chega ao equilíbrio em 2016 em consequência da austeridade. Entretanto, como se verá em sequência, as previsões doseconomistas do sistema não se confirmaram: o setor privado não retomou o ritmo do crescimento e o impulso exportador não se concretizou.

A figura 2 abaixo mostra a evolução dos volumes de exportação e de importação, assim como o progresso do déficit externo (X – M) da economia capitalista na Grécia, também entre 2000 e 2017. Note-se em primeiro lugar que essa economia manteve um enorme déficit externo até 2010, data em que começaram a ser implantados os “programas de ajustamento econômico”. E que esse déficit se mostrou renitente por cerca de uma década. Desde então, entretanto, ele passou de fato a declinar fortemente, anulando-se praticamente em 2015. Ora, isto encaminha a mesma dúvida anterior: a austeridade teria sido bem-sucedida? Para responder a essa pergunta, note-se imediatamente que esse resultado não se deveu à elevação da exportação, mas à queda da importação. É bem evidente que o ingresso de mercadorias do exterior na economia grega caiu devido à brutal recessão imposta pela “troika” à Grécia.

Mas por que a exportação não cresceu com a queda dos salários reais, os quais caíram, sim, fortemente após a implementação das políticas de austeridade? É bem certo que uma queda do salário real eleva potencialmente o lucro empresarial e, assim, a taxa de lucro (pressuposta uma lenta variação do volume de capital fixo). Entretanto, o lucro empresarial não subiu de forma sustentável na economia grega após 2010; ao contrário, apesar de flutuar para cima e para baixo, ele tendeu mesmo a cair no período que vai até 2017. E é isto que se vê claramente na figura 3.

Ora, essa queda dos lucros também é explicada pela austeridade. Dado que ela produziu um verdadeiro afundamento econômico, provocou também uma forte elevação da capacidade ociosa. Ora, essa elevação introduziu uma tendência declinante no volume de lucro e, assim, na taxa de lucro, a qual, junto com a contração da demanda efetiva, inibiu fortemente o investimento. E, sem investimento, não há elevação da produtividade do trabalho; ora, esta vem a ser uma condição necessária para a elevação da capacidade de concorrência de uma economia aberta ao comércio internacional. Assim, ao invés de subir, a competitividade da economia capitalista na Grécia caiu significativamente.

Como mostra a figura 4, o volume de investimento do setor não financeiro da economia grega (SNF), com flutuações devido às circunstâncias cambiantes, manteve depois de 2010 a propensão ao declínio que já se observava desde 2000. A tendência do superávit financeiro (S > I) que vinha declinando passou a se elevar a partir daquele mesmo momento. E isto tem uma explicação: “as empresas procuraram reter fundos para atender aos compromissos de pagamento de dívidas, os quais se acumularam nos anos anteriores; ademais, como elas enfrentavam um ambiente macroeconômico altamente instável e incerto, respondiam assim às condições de fraca demanda devido a austeridade” (Koratzanis e Pierros, 2107, p. 135).

Figura 4

Evolução do investimento e da poupança (SNF)

O artigo de Koratzanis e Pierros é bem mais rico em informações e análises sobre o desastre produzido pelas políticas de austeridade impostas à Grécia. De qualquer modo, eles resumem as suas conclusões do seguinte modo:

Argumentamos que o balanceamento das finanças públicas por meio da austeridade não é uma política ótima ou mesmo certa para elevar a participação do setor privado, revivendo, assim, o crescimento econômico na Grécia. Ao contrário, a austeridade prejudica o equilíbrio interno do setor privado (…) o que pode eventualmente levar a economia grega a uma forte armadilha deflacionária. Ela não apenas produz uma experiência de recessão prolongada (…) mas também mina severamente as perspectivas de crescimento e de desenvolvimento da Grécia; eis que destrói o seu potencial produtivo de longo prazo (Koratzanis e Pierros, 2017, p. 122).

Se tudo isso que apontam é de fato verdadeiro, é preciso acrescentar que também não eram esses os objetivos da política de austeridade imposta à Grécia. Como sempre, no capitalismo, a valorização do valor é o Verdadeiro fim da produção. E no capitalismo dominado pela finança a valorização do capital fictício tem prioridade em relação à valorização do capital real, do capital que comanda a produção de valor e de mais-valor. Esta última, em consequência, fica subordinada à primeira tanto na fase de subida quanto na fase de queda do ciclo econômico. Na subida, a expansão do crédito alavanca a produção; na queda, o peso do endividamento a entrava.

Na queda, o endividamento aparece como excessivo. A tentativa de salvar o capital fictício, isto é, o esforço para impedir o calote das dívidas tende então a conduzir a economia capitalista à depressão, pois ele agrava fortemente a saúde financeira das empresas e das famílias. O calote – ainda que apareça para o pensamento liberal como um delito cometido por pessoas irresponsáveis – é, de fato, uma decorrência necessária da desmedida anterior do próprio capital. Milios tem, no entanto, razão: a austeridade tem, sim, a sua racionalidade (2015). Esta, no entanto, é um momento negativo da lógica contraditória do capital que, assim, apresenta a sua profunda irracionalidade.

Referências

Koratzanis, Nasos; Pierros, Christos –Assessing the impact of austerity in the Greek economy: a sectoral financial balances approach.

In: Real-world economics review, nº 42, 2017.

Milios, John –A austeridade não é irracional.

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