Guadalupe Carniel: Uma morte de papel passado

Falar de jornalismo esportivo para alguns pode ser uma piada. Porque para muitos é exatamente dessa forma que ele é tratado. Tanto que Paulo Vinícius Coelho fala em seu livro Jornalismo Esportivo, que acreditam que por todos já terem visto uma partida de futebol, todos sabem comentar e podem escrever sobre isso, que é uma editoria menor, que não necessita de especialização.

El Grafico Argentina - Reprodução

Como se não bastasse isso, atualmente a profissão passa por reformulações: muitos acreditam que o impresso morreu e coisas assim. Só na Argentina, mais de 2600 jornalistas foram demitidos nos últimos três anos, segundo o Sindicato dos Jornalistas do país. Soma-se a isso, o fechamento de diários centenários como, La Razón que tinha 112 anos e fechou no final de 2017 ou Buenos Aires Herald, o único publicado em inglês na América Latina e que tinhas 140 anos.

Nesta terça, um anúncio destruiu mais um pouco do que ainda tínhamos de imprensa esportiva na América do Sul. Nele, a empresa Torneos y Competencias que administrava a revista El Gráfico desde 2002, época que a revista passa a ser mensal e não mais semanal, já pela “situação da indústria gráfica’’, segundo o grupo. Abaixo o conteúdo do anúncio:

"A Torneos lamenta informar que tenha decidido descontinuar a versão impressa da revista El Gráfico. Esta triste decisão foi tomada em um contexto global de redução do consumo de mídia impressa que afetou nossa revista. Além disso, nos últimos anos, a empresa tentou diversas estratégias comerciais para tentar reverter o déficit da situação econômica da revista. A empresa está analisando outras alternativas para que El Gráfico possa continuar a gerar conteúdo e informações fora do seu formato tradicional. Além da interrupção da impressão da revista, o arquivo de El Gráfico que inclui fotos e edições anteriores, continuará a estar disponível para consulta ".

A revista foi fundada no dia 30 de maio de 1919 e começou como uma revista masculina, sobre assuntos variados. Falava-se sobre artes, política, notícias políticas, deportes, tinham fotos de dançarinas nuas e coisas assim. Mas em algumas poucas páginas tratava de basquete, rugby, boxe e automobilismo. Em 1921, passa a ser puramente esportivo e nos anos 1930 consagra-se com uma tiragem de cerca de 200 mil exemplares semanais.

É a publicação mais antiga sobre esportes em circulação na América Latina e foi a base de todas as revistas feitas sobre o segmento no continente.

Para os argentinos então, é uma bíblia e não é para menos: é ela quem estipula a ideia de que existem duas datas de fundação do futebol argentino, uma inglesa e uma com construção de identidade puramente albiceleste, quando o Racing se sagra campeão sem nenhum jogador britânico, em 1913. Com a publicação o dribbling inglês passa a se chamar gambeta.

E outras expressões como pibe e potrero tomam conta não só do imaginário, mas da narrativa esportiva nacional e do cotidiano. Cronistas que beiravam a literatura e ao mesmo tempo faziam ótimas análises também integraram o periódico, como Borocotó (que escreveu o texto Jugador nº12, que se tornou a alcunha da torcida do Boca, em referência a um torcedor da equipe que a seguia a todos os lados) ou Quiroga, autor de Puntero Izquierdo, primeiro texto em que o jogador tem voz na história narrada.

Em 1986, por exemplo, bateu recorde de vendas: 690 mil revistas com Diego na capa, segurando a taça da Copa, após a Argentina conquistar o mundo pela segunda vez.

Não tenho uma grande coleção da revista. Consegui sempre com amigos que íam ao país e nos sebos. Mas as poucas que eu tenho guardo como tesouros preciosos. Para mim, a revista estava bem além do que a Placar era, principalmente nos anos 1990, quando a publicação brasileira passa por uma mudança na linha editorial.

Claro, tenho amigos com coleções bem maiores e quando vou até suas casas, minha vontade é literalmente entrar dentro daquelas saborosas páginas: feitas com perfis detalhados, crônicas esportivas que poderiam ser consideradas obras literárias, matérias extensas, mas bem escritas, fotos exuberantes e sempre com capas emblemáticas com as maiores personalidades dos esportes. Neste ponto, comprar uma publicação pela capa não era nenhum pecado, era um convite a uma leitura deliciosa.

Se para mim, a revista era assim, eu sempre imaginei para um argentino: ir nas segundas às bancas (em muitas edições esgotava no mesmo dia), logo cedo e, como li em um artigo “era como tocar o céu com as mãos, todos queriam estar lá”.

A ligação com a revista era tão grande que podemos dizer que ela era uma espécie de “pai de todos”: além de servir de referência no jornalismo esportivo sul-americano, sabia quando dar “tapas” (aqui entenda-se que tapa em espanhol é capa) duras como quando a Argentina de 1993, há 33 jogos invictos tomou uma goleada da Colômbia.

Foi com o El Gráfico que entendemos que o futebol na Argentina é outro. Se respira diferente. Se sente diferente. Ele estava em outro nível, para a maioria de nós, impossível de explicar ou transmitir, mas não para os redatores da revista, que nos faziam sentir o pulsar através das páginas.

Os tempos futeboleiros já não são os mesmos, a forma de se fazer jornalismo também não, mas a emoção de abrir aquelas páginas eram sempre as mesmas. Talvez as ilusões românticas que eram resgatadas através de suas páginas.

A última capa foi com Ariel Holan, treinador do Independiente, o último campeão da Copa Sudamericana. Como continuará o conteúdo, o formato, o jornalismo esportivo e o futebol, somente o tempo irá dizer. Mas, por hora tudo o que se pode dizer é que encerra-se uma era. RIP.