Paulo Kliass: Entre o liberalismo e o entreguismo

A julgar pelo tom de mistério e opacidade dos grandes meios e comunicação, até parece que sociedade brasileira teria sido pega de surpresa com a divulgação do estágio bastante avançado das negociações envolvendo as direções das empresas Embraer e Boeing.

Por Paulo Kliass*

Embraer

Como se sabe, a Embraer foi formalmente fundada em 1969, sob o formato de uma sociedade de economia mista federal. Na verdade, antes mesmo de sua formalização como empresa estatal, já havia em etapa de desenvolvimento um projeto de construção de aeronaves brasileiras. Esse movimento vinha sob o impulso de conhecimento e tecnologia desenvolvidos no âmbito do Departamento de Ciência e Tecnologia da Aeroespacial (DCTA) e do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), ambos organismos militares baseados em São José dos Campos (SP).

No entanto, há pouco mais de 23 anos, em 8 de dezembro de 1994, a empresa foi privatizada a preço de banana. O consórcio vencedor do leilão pagou o equivalente a R$ 154 milhões e a liquidação se deu com base em títulos financeiros chamados à época de moedas podres. Os compradores adquiriram a empresa por um valor muito menor, uma vez que tratava-se de papéis emitidos por órgãos do governo federal e que eram negociados por valores muito abaixo de seu valor de face. O valor atual do patrimônio da empresa é próximo a R$ 12 bilhões.

Embraer: presente de Natal para a Boeing?

As informações divulgadas pelos meios financeiros dão conta de interesse da gigante mundial Boeing em se fundir à Embraer. Mais do que uma fusão, o resultado será uma deglutição. Caso se concretize, esse passo significará a perda total de controle sobre as decisões estratégicas da empresa brasileira. Enfim, na verdade seria uma etapa a mais no aprofundamento do processo iniciado há mais de 2 décadas, uma vez que após a privatização o grupo deixou de obedecer aos interesses de um projeto nacional de desenvolvimento. As opções empresariais da Embraer após 1994 passaram a obedecer estritamente aos interesses dos acionistas privados e à lógica de maximização do retorno sobre o estoque de capital. Mas havia um limite dado à entrada do capital internacional da aeronáutica na empresa brasileira.

É importante compreender que a Embraer não é um caso isolado. Ao longo das últimas décadas o Brasil tem assistido passivamente ao ingresso crescente do capital estrangeiro em um conjunto extenso de setores de nossa economia. Assim foi com a entrada expressiva dos fundos financeiros internacionais na aquisição de controle majoritário de empreendimentos educacionais, em especial no ensino universitário. O processo iniciado à época dos governos FHC se manteve como tendência durante os mandatos de Lula e Dilma.

Outro setor que tem sido objeto de interesse e aquisição por parte dos grupos internacionais é o da saúde. Aqui também houve uma estratégica flexibilização na legislação promovida em 2015, por meio da Lei 13.097. Até então havia uma proibição e algumas limitações ao ingresso de capital estrangeiro nas atividades do setor. Mas a lei sancionada por Dilma liberou geral e ofereceu a segurança jurídica aos investidores internacionais.

Educação, saúde, eletricidade, petróleo, terras agrícolas etc.

Outro motivo de júbilo dos liberais radicais foi a decisão de Temer de oferecer o ingresso sem limites do capital internacional na aquisição de terras em território nacional. O governo pretende se empenhar na aprovação de um Projeto de Lei que libera os limites atualmente existentes para esse tipo de propriedade nas mãos de estrangeiros. A intenção é agradar os interesses dos grupos vinculados ao agronegócio e ampliar o leque de alternativas de investimento com elevada rentabilidade aos grupos financeiros internacionais.

A participação de capitais chineses nos leilões de privatização e concessão das diversas áreas de infraestrutura também tem sido expressiva. O financismo não esconde sua satisfação e seu deslumbramento com esse ingresso de recursos estrangeiros em áreas sensíveis e estratégicas para o funcionamento da sociedade e da economia brasileiras, a exemplo da exploração de rodovias, ferrovias, geração e transmissão de eletricidade, portos, entre muitos outros. Ao que tudo indica, não há nenhum registro de problemas de consciência quanto a tal entrega.

No caso específico da Petrobrás a situação é ainda mais grave. Além de contribuir para o esfacelamento de uma das maiores empresas do mundo, o governo Temer está estimulando o ingresso acelerado das gigantes petroleiras do mundo. Seja para participar do controle de subsidiárias da Petrobrás em liquidação privatizante, seja para avançarem com maior apetite na exploração das reservas do Pré Sal. A turma das finanças vibra e comemora a cada vez que uma multinacional abocanha uma nova fatia de mercado da Petrobrás, além de pressionar para eliminar políticas de conteúdo nacional e oferecer benefícios tributários já estimados em R$ 1 trilhão de reais.

Do liberalismo ao entreguismo: um pulinho.

Ora, frente a tal escalada de desnacionalização deliberada e intencional, não há muito como alguém se “espantar” com a notícia da negociata envolvendo a Embraer e a Boeing. O paradigma liberal levado à sua radicalidade não reconhece mesmo fronteiras para o capital. Para os defensores da supremacia das livres forças de mercado, não existe razão ou motivo para impor limites à livre circulação de capital. Assim, uma vez incorporado o credo liberal, a internacionalização é o próximo passo, digamos assim, “natural” para a busca da suposta melhor eficiência na alocação dos recursos da economia.

Isso dito, resta obviamente o espanto da maneira pela qual as elites tupiniquins abandonaram todo e qualquer projeto de país em seus debates estratégicos a respeito do futuro de nossa sociedade. Navegando ainda nas heranças coloniais do escravismo e do extrativismo irresponsável, elas moldaram-se no comportamento habituado aos elevados ganhos, sempre proporcionados pelas taxas escandalosas do nosso tipo particular de financismo exacerbado.

Se é bem verdade que o entreguismo liquidacionista seja o sucedâneo de um liberalismo irresponsável, algumas nuances tendem a ocorrer quando ocorre algum tipo de mediação pela dimensão da política. Assim, quando sentem a corda esticar demais, os dirigentes podem recuar e alguma lufada de espírito nacionalista passa a influir no debate. Mas para isso se manifestar seria necessário que frações das classes dominantes tentassem esboçar algum tipo de interesse por seu país. Ou então que o movimento popular e democrático manifestasse nas ruas seu descontentamento com tal risco.

É importante lembrar que o governo brasileiro ainda possui no caso da Embraer aquilo que o mercado financeiro chama de “golden share”, ou seja, “ação de ouro”. Trata-se do direito que o governo tem de vetar qualquer medida contra a economia nacional relacionado à vida empresa já privatizada. Esse é exatamente o quadro que vivemos no momento atual.

A ver se o desenrolar do caso Embraer oferece alguma janela de esperança quanto ao debate e encaminhamento de um projeto nacional de desenvolvimento. Afinal, seis décadas após seu surgimento, a indústria aeronáutica continua a ser estratégica para qualquer projeto de soberania nacional. Entregar a empresa a uma das líderes do capitalismo norte-americano é crime de lesa pátria.