Ensino médio integrado e os desafios da educação profissional

Há uma década, consolidava-se a política de Ensino Médio com formação humana integral, fundamental para superar a divisão social histórica do trabalho entre os que ‘pensam’ e os que ‘executam’. A política de Temer vai à contramão dessa conquista.

Por Lucas Barbosa Pelissari*

sala de aula - EBC

Apesar de prevista no Decreto nº 5.154, emitido em 23 de Julho de 2004, a possibilidade de integração curricular entre o Ensino Médio e a Educação Profissional começa a se consolidar, tanto como política pública quanto a partir das experiências construídas na realidade das escolas, no ano de 2007.

O referido decreto representou importante avanço em relação às formas aligeiradas e mercadológicas segundo as quais a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM) vinha sendo organizada no Brasil, principalmente como resultado da impossibilidade, prevista em lei, de articular de maneira integrada os conteúdos propedêuticos do Ensino Médio e a formação técnico-profissional. Dois marcos localizados no ano de 2007 e outro no ano de 2008 foram decisivos para que o Ensino Médio Integrado passasse a ser encarado como política pública e como prioridade no que se refere à oferta de EPTNM, sobretudo no âmbito da educação não privada.

Dois são os objetivos desse texto. Em primeiro lugar, comemorar os 10 anos de consolidação da política e das experiências de integração curricular, fazendo-o a partir de dados concretos e de uma retomada histórica que evidenciam os avanços obtidos na Educação Profissional brasileira. Em segundo lugar, tratar essa comemoração como um ato de resistência, evidenciando as ameaças à integração curricular presentes na contrarreforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017), imposta autoritariamente por um governo sem legitimidade.

A emissão do Decreto 5.154/2004, cujo conteúdo representava a reivindicação de importantes setores do movimento educacional, foi o marco político de uma ruptura provocada na Educação Profissional brasileira. A partir dali, a dualidade estrutural[i] que sempre caracterizou o Ensino Médio como etapa de ensino passava a ser enfrentada, ainda que as maneiras como os arranjos curriculares absorveriam essa questão ou como se organizaria a materialidade da política nas salas de aula fossem interrogações.

O fato é que, a partir de 2004, iniciou-se um debate importante entre as escolas, entidades e movimentos sociais ligados à educação sobre como seria colocada em prática a perspectiva político-pedagógica, até então proibida, que tem como fundamento a articulação integral entre os conhecimentos científicos historicamente acumulados pela humanidade e a formação técnica para uma profissão.

Muitos foram os eventos organizados pela academia, pelos sindicatos, escolas e coletivos de educadores para debater o tema e encontrar saídas que consolidassem o que estava, então, apenas apontado em um decreto. Vale destacar que esse processo foi construído e vivido no bojo de novas perspectivas que se abriam para a disputa dos rumos de um novo projeto de país. Muitos foram os resultados, desde experiências educacionais muito específicas até marcos legais que fundamentaram o que temos hoje, materializados na oferta de quase 400 mil matrículas na modalidade da EPTNM integrada ao Ensino Médio.

Três desses resultados são especialmente importantes. Em primeiro lugar, o Programa Brasil Profissionalizado, marco político fundamental para garantir a implementação da medida nas escolas e previsto no Decreto nº 6.302, de 12 de dezembro de 2007, portanto exatos dez anos atrás.

O programa previa o estímulo da oferta do Ensino Médio Integrado nos estados e municípios, com recursos do governo federal para infraestrutura e modernização de escolas, formação docente e fomento da oferta de EPTNM nas redes públicas de educação básica. Considerando a condição de estruturação da rede de EPTNM, o Programa Brasil Profissionalizado forneceu parte do substrato legal necessário à garantia de oferta de cursos com laboratórios adequados e professores preparados, finalizando mais de 300 obras em escolas, formando cerca de 2500 docentes e totalizando um investimento de mais de R$ 2 bilhões até o fim de 2016.[ii]

O programa ainda enfatiza a “educação científica e humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional no contexto dos arranjos produtivos e das vocações locais e regionais”[iii], dando o pontapé necessário à elaboração pedagógica e curricular que deveria conformar a política de Ensino Médio Integrado nas escolas.

Foi, entretanto, no Documento Base da EPTNM integrada ao Ensino Médio[iv] que os princípios e diretrizes do Ensino Médio Integrado foram explicitados. O documento tornou-se, a partir de 2007, ferramenta essencial para a implementação da política, subsidiando a formação docente, o desenho dos currículos e, de maneira geral, a materialização da proposta nas escolas.

Como ideia geral, o documento assenta as bases pedagógicas do Ensino Médio Integrado na perspectiva da formação humana integral. Compreende, assim, a articulação entre os conhecimentos técnicos e científicos como elemento fundamental da superação do “ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho ou entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar.”[v] Nesse sentido, o trabalho, ontológica e criticamente concebido, é o princípio educativo da concepção contida na proposta, além de se articular às categorias da ciência, cultura e tecnologia conformando o eixo curricular central do Ensino Médio Integrado.

O Documento Orientador da EPTNM integrada ao Ensino Médio é, como se pode perceber, um marco histórico da Educação Profissional brasileira. Além de absorver reivindicações históricas, fruto não somente de pesquisas acadêmicas sobre a realidade da escola de nível médio brasileiro, mas também de formulações construídas no seio das lutas populares, o documento demarca politicamente o conteúdo da Educação Profissional a partir de 2007, apontando no sentido oposto ao que se tinha até então.

Todo esse contexto de intensas transformações acaba por ser absorvido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB nº 9.394/1996), no ano de 2008. A Lei nº 11.741, sancionada em 16 de julho daquele ano, impõe alterações decisivas na LDB, incorporando o conteúdo do Decreto 5.154/2004. Obviamente, os marcos de 2007 foram condições necessárias para essa incorporação.

Como resultados gerais, ainda que com inúmeras dificuldades, tanto de implementação na materialidade das escolas, quanto de efetivação dos princípios da integração e formação integral, o Ensino Médio Integrado representou um avanço muito importante na política educacional brasileira. Os princípios aqui expostos fincaram os pés da Educação Profissional Técnica de Nível Médio numa perspectiva pública de qualidade, impondo dificuldades ao grande capital na disputa dos rumos e dos objetivos da formação técnica de trabalhadores ofertada pelo Estado.

Desde 2007, o número de matrículas no Ensino Médio Integrado quase quadruplicou, num crescimento superior ao das outras modalidades (subsequente e concomitante). É também naquele ano que a relação entre o número de matrículas na esfera pública e na esfera privada sofre uma reversão: em todos os anos, desde 2007, a maioria das matrículas passou a se concentrar na rede pública. Sem dúvida nenhuma, esse impacto se deve ao Ensino Médio Integrado, modalidade que chegou a concentrar, nas escolas públicas federais e estaduais, 93% das matrículas em todo o país.[vi]

Se os dados que discutimos evidenciam importantes razões de comemoração dos 10 anos de consolidação da política de Ensino Médio Integrado, por outro lado, a conjuntura brasileira atual exige que essa comemoração seja, ao mesmo tempo, um ato de resistência.

A Lei nº 13.415/2017, que organizou a chamada contrarreforma do Ensino Médio, fornece todas as bases para a destruição dessa política. A lei prevê que a oferta de Ensino Médio seja estruturada a partir de uma Base Nacional Comum Curricular e por uma “parte diversificada”, que inclui diferentes itinerários formativos a serem escolhidos pelo estudante. Obviamente, essa escolha não será feita dentre opções iguais em todas as escolas, mas a depender das condições de cada realidade escolar de ofertar um ou outro itinerário.

Dentre os possíveis itinerários formativos, está a “formação técnica e profissional” e o governo já sinalizou a forma como essa opção existirá: mediante a oferta hegemônica de cursos a distância e com profissionais contratados através de vínculos precários de trabalho, como tutoria, bolsas e contratos temporários. Há, inclusive, uma opção bastante concreta: o famigerado programa MedioTec, que estabelece parcerias entre a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e as redes estaduais.

Com repasses vultosos de recursos às instituições que compõem a rede, as parcerias são firmadas de maneira a delegar às escolas federais a seleção de tutores e a gestão da política, criando uma aparência de oferta em massa que dificilmente será executada com qualidade ou, no mínimo, com as mesmas diretrizes dos cursos técnicos ofertados na Rede Federal.

Com isso, o governo cumpre, de uma vez, uma série de objetivos: finge que financia a Rede Federal, implementa a contrarreforma do Ensino Médio e enterra a perspectiva da formação humana integral presente no Ensino Médio Integrado. Como saldo político, ainda coopta dirigentes federais que dependem de recursos para seguir construindo os campi dos Institutos Federais e CEFETs e veem os repasses desses recursos serem diminuídos a cada mês. Trata-se de um ataque sem precedentes, que recoloca a dualidade estrutural na ordem do dia da educação brasileira.

Por fim, é fundamental que a defesa do Ensino Médio Integrado não seja feita de maneira descolada da realidade política mais geral. Os avanços e as possibilidades de retrocessos que discutimos no texto evidenciam a necessidade da construção de um projeto consolidado de país, que tenha como princípios o desenvolvimento, a soberania e a participação popular.

Sem esses pilares, cujos eixos e fundamentos devem emergir dos debates, das lutas e da resistência aos ataques impostos pelo projeto privatista e antipopular em curso, não só as políticas de formação da classe trabalhadora ficam ameaçadas, mas toda a política social e os direitos conquistados historicamente com muito sofrimento. Nesse sentido, convidamos ao debate e à reflexão os atores que vivenciam diariamente o Ensino Médio e a Educação Profissional, encontrando saídas coesas para um período que exige muita resistência.

Notas

[i] A história da educação de nível médio no Brasil é condicionada, desde suas origens, pela divisão social do trabalho e, consequentemente, pela maneira dicotômica de conceber os sistemas de ensino: educação científica, propedêutica, de caráter geral para as classes dominantes, fundamentando a preparação para a continuidade nos estudos; e ensino técnico, manual, de educação profissional para as classes populares. A respeito desse tema, ver KUENZER, A. Z. Ensino Médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2009.

[ii] BRASIL. MEC. SETEC. Processo de contas anuais – relatórios de gestão exercícios 2004-2015. Brasília, 2017. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/auditorias?id=14945>.

[iii] BRASIL. Decreto nº 6.302 de 12 de dezembro de 2007. Institui o Programa Brasil Profissionalizado. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 2007.

[iv] BRASIL. MEC. SETEC. Educação profissional técnica de nível médio integrada ao ensino médio: documento base. Brasília, 2007b. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/documento_base.pdf>.

[v] Idem, p. 41

[vi] BRASIL. MEC. INEP. Sinopse estatística da educação básica, 1995-2016. Brasília, 2017. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica>.