Futebol e caldo de cana

O menino Alexandre de Carvalho é um herói nacional e está para a história de Pernambuco no mesmo patamar de um Frei Caneca, um Maurício de Nassau, um João Cabral. Não sabem de quem se trata?

Por Luiz Antônio Simas*

santa cruz

Vamos aos fatos. A 3 de fevereiro de 1914, perto do furdunço do carnaval e meses antes da Guerra Mundial, onze garotos de Recife, entre quatorze e dezesseis anos, resolveram criar um time de futebol. Como a meninada costumava jogar bola no pátio da Igreja de Santa Cruz — para desespero dos padres e beatas que, vez por outra, viam uma pelota invadir a igreja durante a missa — , o nome do time foi escolhido sem maiores polêmicas: Santa Cruz Football Club, com direito a sotaque britânico e o escambau.

O início da trajetória do time da garotada foi arrasador. O Santa obteve vitórias por goleadas contra o Rio Negro, respeitável equipe do Recife à época, e um surpreendente triunfo sobre os ingleses que trabalhavam na Western Telegraph Company de Pernambuco. Os súditos da rainha, cheios da marra típica dos inventores do futiba moderno, ostentavam até então categórica invencibilidade. Estava nascendo ali, nos pés daqueles garotos, uma das glórias do futebol brasileiro e paixão maior do povo que dribla no compasso do frevo.

Pouco depois da fundação, e apesar das vitórias iniciais, a situação financeira do time da meninada era desesperadora. O dinheiro em caixa, seis mil réis, era insuficiente para a manutenção de uniformes, chuteiras e bolas da equipe. Um dos fundadores sugeriu, então, que eles desistissem da ideia do time, comprassem com a quantia uma máquina de fazer caldo de cana e vendessem a bebida na Rua da Aurora.

A sugestão — transformar o time de futebol na máquina de caldo de cana — vigoraria e o Santa Cruz iria para o beleléu, se não fosse a intervenção heroica de Alexandre de Carvalho. O insurgente transformou a reunião em um fuzuê dos diabos, subiu na mesa, ameaçou jogar a geringonça de caldo de cana nas águas do Capibaribe, jurou envenenar a bebida para fazer todo mundo parar na polícia e outros babados. Usou um argumento irrefutável:

— Nós gostamos de jogar futebol, e não de vender caldo de cana. Que se dane o dinheiro!

Alexandre garantiu, com esse providencial ataque, que o Santa Cruz não se transformasse numa barraquinha de bebidas na Rua da Aurora em nome de uma engenharia financeira mais eficaz.

Alexandre de Carvalho é o símbolo que o Santa Cruz e o próprio futebol brasileiro precisam canonizar no altar da pátria. A grita do garoto contra a barraquinha de caldo de cana é nosso estandarte contra os engravatados de plantão, empresários da pelota, senhores dos Grêmios de Barueri, Prudente e sei lá que diabos, patrocinadores que transformam camisas gloriosas em trapos repletos de propagandas, apóstolos que usam o futebol para fazer proselitismo religioso e entidades que violam a tradição, a arquitetura e a história dos estádios em nome de empreendimentos milionários e mamatas superfaturadas.

O esporro do moleque nos companheiros, diga-se, transcende o futebol e vale mais como lição de vida do que duzentos livros de autoajuda produzidos por padres, psicanalistas, pastores, pais de santo, médiuns, empresários, atletas, educadores de titica, magos, fofos e fofas de plantão e biltres de todos os calibres.

O garoto Alexandre, ao mandar o seu “Não fode!” ao projeto que poderia ter feito do Santa Cruz do Recife uma barraquinha de caldo de cana, condensou em uma frase um verdadeiro tratado sociológico sobre o futebol, o Brasil, o dinheiro e a dimensão do que o homem está fazendo (ou deveria fazer) nessa travessia entre uma trave e outra do gramado:

— Nós gostamos de jogar futebol, e não de vender caldo de cana. Que se dane o dinheiro, caralho!