Base Curricular é conservadora, privatizante e ameaça autonomia

Há cerca de três anos o Ministério da Educação (MEC) iniciou a construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tem por objetivo estabelecer um conjunto de orientações para nortear os currículos das escolas públicas e privadas de ensino infantil e fundamental. O perfil da Base não é dos mais alentadores.  Apresenta um caráter conservador, reflete com maior ênfase os interesses de grupos privatizantes e representa um risco à liberdade e autonomia dos professores, entre outros problemas.

Maria Martins Unicamp

A professora Maria do Carmo Martins, líder do Grupo de Pesquisa Memória, História e Educação (Memória) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, explica que a elaboração da BNCC estava prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), promulgada em 1996. Como política de Estado, afirma, a Base é um projeto legítimo. “Ocorre que as discussões se estenderam e foram desenvolvidas em um momento de profundo conflito social, ao longo do qual houve o acirramento das divergências entre os diferentes grupos que participaram do processo. Em boa medida, o documento reflete essas divergências”, considera a docente.

Um aspecto perceptível na proposta da BNCC, prossegue Maria do Carmo, é a presença de propostas que contemplam os interesses dos empresários da educação, como produtores de softwares e materiais educativos. “A Base não é uma pauta específica dos segmentos privatizantes. Ao contrário, ela está na agenda de diferentes grupos sociais, inclusive os que fazem uma forte defesa da escola pública de qualidade. No entanto, os representantes dos interesses mercadológicos se vincularam ao Estado e conseguiram explicitar suas demandas. Uma das consequências dessa estratégia foi a saída de alguns movimentos do processo, porque perceberam que não poderiam mais fazer a defesa da escola pública”, relata.

Outra questão presente na atual proposta da BNCC, de acordo com a docente da FE, é o caráter conservador do documento. Uma leitura desatenta do texto, observa Maria do Carmo, pode dar a impressão de que ele está isento de políticas preconceituosas. “Mas um olhar atento verificará que a Base é muito tímida em relação a direitos sociais, a ações de inclusão e a questões de gênero, posição que está em consonância, por exemplo, com a postura daqueles que defendem a Escola sem Partido. É interessante que a sociedade tenha conhecimento disso, até para que compreenda como esses movimentos influenciam na formulação de políticas públicas, principalmente as vinculadas à educação”, analisa a docente.

Por causa desses e outros aspectos, a especialista da Unicamp afirma considerar não ser conveniente a existência da BNCC neste momento histórico, justamente porque o documento foi construído em um contexto de acirramento de divergências. “Eu concordo com o professor Luiz Carlos de Freitas [também da FE-Unicamp], que alertava em 2015, quando a primeira versão do documento foi divulgada, de que não havia base para discutir a Base Curricular. Naquele momento, ele alertava que essa política serviria somente como catalizador de interesses com grande expressão política. Penso que foi isso que aconteceu, porque as questões envolvendo uma sociedade mais justa não estavam e ainda não estão equacionadas no país”.

Ao analisar os possíveis impactos das medidas previstas na BNCC sobre o currículo e a qualidade da educação, a especialista chama a atenção para dois pontos. Um deles refere-se à característica ambígua do documento. “Ao mesmo tempo em que afirma que a Base não é o currículo, mas sim uma diretriz para a elaboração deste, o texto entra em minúcias acerca das finalidades e objetivos do ensino. Há aí uma inversão. Existe uma consolidada crítica à visão tradicional dos currículos organizados por objetivos. E a BNCC insiste em consolidar essa visão de desenvolvimento curricular, ignorando que é na dinâmica da cultura que as seleções são feitas, de modo que sejam socialmente válidas para a comunidade de estudantes e educadores, conferindo sentidos ao processo educativo”, especifica.

A segunda questão abordada por Maria do Carmo, que está diretamente relacionada à primeira, diz respeito à qualidade da educação. No entender da docente, ao vincular a qualidade às avaliações sistêmicas, o documento coloca em segundo plano a expressividade do processo de escolarização. “Em outras palavras, a ideia em questão tira o cotejo da aprendizagem do encontro pedagógico, que é algo que pode modificar qualitativamente a vida das pessoas, e o coloca sobre o resultado. Isso produz uma estandardização da educação, baseada em uma visão também padronizada de qualidade”.

Jogo em curso

O professor Antonio Carlos Amorim, também da FE-Unicamp, acompanhou de perto das discussões em torno da BNCC, principalmente no período entre 2013 e 2015, quando ocupava o cargo de vice-presidente, para a região Sudeste, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), uma das entidades científicas que foram chamadas ao diálogo pelo MEC quando a proposta de construção da Base foi reavivada. Ele concorda com a professora Maria do Carmo quando esta afirma que os embates entre diferentes grupos acabaram refletidos no texto do documento. “Vale dizer que as disputas ocorreram tanto no interior do MEC quanto entre os setores público e privado”, pontua.

Amorim entende igualmente que a terceira versão da BNCC expressa de forma mais enfática os interesses mercadológicos, que podem ser constatados em diversos aspectos. Um deles, assinala, é a ideia da eficiência relacionada à aprendizagem, o que permitiria que os estudantes aprendessem mais rapidamente os conteúdos. “A Base estabelece, por exemplo, que a alfabetização ocorra de forma mais precoce. Assim, a educação infantil se estruturaria dentro das lógicas da escolarização, para a qual a constituição de um currículo orientador é uma das bases fundamentais O documento também confere ênfase a determinadas disciplinas que considera prioritárias, em detrimento de outras. Um dos interesses em foco são os rankings internacionais que avaliariam a qualidade da educação. O objetivo parece ser, em suma, gestar formas de melhorar a imagem do país no plano internacional”, detalha.

O contorno conservador da BNCC é reforçado pelo docente. De acordo com ele, ao indicar a implantação de currículos mínimos nacionais, a Base deixa de ressaltar vários temas, notadamente culturais, o que expressaria uma certa concepção de neutralidade das ciências pedagógicas. “Desse modo, disciplinas que trabalham temas considerados mais polêmicos, como questões relacionadas à diversidade de gêneros, perderiam espaço, algo bem afinado com as bandeiras defendidas pelos adeptos da Escola sem Partido”.

Além dessas presenças importantes na proposta da Base, Amorim destaca também uma ausência, que segundo ele é reveladora de como o processo de construção da proposta se deu, e que por isso merece reflexão. “O ensino médio não está na BNCC. Não foi incluído porque alguns segmentos querem vinculá-lo à profissionalização. Ainda não há acordo sobre isso, dado que a LDB estabelece que o ensino médio, assim como o fundamental, é dever do Estado. Ainda não sabemos o que será feito com esse nível de ensino. Entretanto, vemos uma clara movimentação no sentido de vincular formação profissional à participação da iniciativa privada”, observa.

Embora reconheça que os setores que defendem os interesses privatizantes tenham exercido protagonismo no desenho da BNCC, o docente da FE-Unicamp entende que o jogo ainda não acabou. “O que nós temos hoje é a disputa, por exemplo, entre entidades ligadas aos setores empresariais e associações científicas. Todos estão tentando fazer circular na sociedade sentidos para a construção da Base, quer seja concordando ou questionando esse movimento. Penso que a disputa ainda não acabou. O governo federal tem privilegiado alguns setores e dado algumas questões como vencidas, mas não vejo as coisas dessa maneira. Penso que ainda temos espaço para negociações”, diz Amorim.

O docente informa que setores que defendem a escola pública de qualidade estão se mobilizando e participando criticamente de discussões em torno de sugestões que possam fazer o documento ganhar outro perfil. A criação do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), ocorrida em junho de 2017, é um exemplo da atuação desse movimento, conforme Amorim. “Essas entidades trarão novas propostas e conceitos que ainda não estão colocados. No ano que vem, questões como a formação dos professores deverão ser evidenciadas. O jogo tende para certa hegemonia, mas insisto que ele ainda não está finalizado”.

Toda essa movimentação, que parece ter um caráter mais geral, continua o professor da FE-Unicamp, já tem provocado reflexos no espaço da escola. “Muitos relatos vêm dos educadores. Alguns efeitos das diretrizes impostas à educação já podem ser sentidos na sala de aula, como o constrangimento ao trabalho dos professores. De maneiras distintas, as políticas propostas afirmam que o lugar do professor não é um lugar de liberdade. Isso não é fruto específico da BNCC, mas ela vem para reafirmar essa posição. Os professores sabem que algumas das proposições estão relacionadas com o processo de avaliação e certificação, o que tem gerado insegurança entre eles, visto que pouco puderam participar da construção do documento”.

Por fim, Amorim faz uma breve consideração sobre os possíveis impactos da promulgação da BNCC sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA). “A EJA não está entre meus temas de pesquisa, mas nos congressos dos quais tenho participado os especialistas têm chamado a atenção para o risco desse tipo de política fazer desaparecer a educação de jovens e adultos da estrutura formal da educação. Ela continuaria concedendo certificados, mas sem uma vivência escolarizada. A EJA traz em seu bojo a discussão sobre a educação popular, que virou bandeira de combate de alguns segmentos, como se o popular não pudesse ser contemplado no contexto da Base. A tendência, infelizmente, tem sido a de deixar tudo que é identificado como popular à margem das políticas públicas”, lamenta.