Hélio Leitão: Dias no Mianmar

“Francisco, o papa, viajou ao Mianmar no calor do momento. Foi a primeira viagem de um pontífice àquelas bandas. Atento às boas maneiras diplomáticas e seguindo a orientação da burocracia vaticana, não fez alusão nominal ao povo Rohingya. Não precisou. Chamou a atenção do mundo para a causa. Já Aung San…"

Por *Hélio Leitão

Papa Francisco

Em seu romance de estreia, Dias na Birmânia, publicado nos idos de 1934, George Orwell apresenta ao Ocidente aquele pequeno e esquecido país do sul da Ásia, então colônia britânica. Nele, sob o ângulo de visão da personagem John Flory, em verdade alter ego do autor que naqueles tempos ali trabalhou como policial, faz-se o relato de toda a indiferença e crueldade do colonizador convencido de sua superioridade racial em relação às populações nativas. O país não passava então, aos olhos da potência colonial, de uma selva de onde se extraíam madeiras para a indústria europeia. Seu povo, mão de obra a ser explorada.

Sobreveio a independência birmanesa em 1948, sendo o país, hoje rebatizado Mianmar, gerido por militares desde o golpe de estado levado a efeito em 1962 até as eleições livres realizadas em 2015, que conduziram civis ao poder. Na luta pela democratização, nasce a liderança inconteste de Aung San Suu Kyi, ela própria filha de um líder da independência birmanesa. É presa domiciliarmente. Em 1990, o Parlamento Europeu lhe outorga o prêmio Sakharov. No ano seguinte, o Nobel da Paz. Torna-se ícone dos movimentos pela restauração da democracia.

Finalmente libertada, volta à participação legal no processo político. Ocupa desde 2016 o cargo de Conselheira de Estado, com poderes típicos de um primeiro-ministro. Já se antevia como um de seus principais desafios, a par da consolidação da democracia, a boa condução dos conflitos étnicos que historicamente sacudiram o país de maioria budista. Afinal, ninguém mais à altura da missão do que uma defensora de direitos humanos forjada nas lutas democráticas.

Ao entusiasmo seguiu-se, a galope de cavalo selvagem, a frustração. Em seu governo é desfechada brutal ofensiva do exército contra o povo Rohingya, minoria étnica de há muito perseguida. Já se contabilizam seiscentos mil os refugiados que acorreram à vizinha Bangladesh, tangidos pelas perseguições oficiais.

Francisco, o papa, viajou ao Mianmar no calor do momento. Foi a primeira viagem de um pontífice àquelas bandas. Atento às boas maneiras diplomáticas e seguindo a orientação da burocracia vaticana, não fez alusão nominal ao povo Rohingya.

Não precisou. Chamou a atenção do mundo para a causa. Já Aung San…


*Hélio Leitão é advogado

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