Saber, poder e indução política: Banco Mundial, ator intelectual

 Nos últimos dias, o Banco Mundial divulgou o relatório intitulado “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, com diversas prescrições sobre o que as autoridades brasileiras devem fazer em matéria de ajuste fiscal. Com ampla repercussão nos grandes veículos de comunicação e reações contrárias nas mídias sociais, o relatório trouxe para o centro da cena pública o debate sobre o Banco e sua atuação no país. 

Por João Márcio Mendes Pereira*

Banco Mundial - Foto: Divulgação

A projeção midiática de suas prescrições deve ser entendida no quadro maior de disputa política em torno da natureza, intensidade e duração do “ajuste”, bem como a forma de conduzi-lo.

Não surpreende que os principais veículos de comunicação tenham dado tanta repercussão ao relatório. O Banco Mundial é um ator político de primeira ordem no cenário internacional, dispondo de mais de 12 mil funcionários e imenso aparato de produção de intelectual.

Apesar do histórico pouco animador em matéria de criação de conhecimento inovador em Economia, o Banco desfruta de legitimidade como fonte de dados, disseminador de ideias, produtor de análises comparativas e guia em matéria de políticas de desenvolvimento.

As publicações dessa instituição são referências obrigatórias em cursos de Economia e Administração no mundo inteiro. As análises comparativas internacionais feitas pelo Banco dificilmente tem concorrência à altura no meio acadêmico.

Como regra, as últimas publicações e resumos de imprensa da instituição são tomados como referência autorizada pelos maiores jornais do planeta. Na cobertura de diversos assuntos, a grande mídia recorre com frequência ao Banco como fonte de dados econômicos e sociais.

A mesma influência pode ser constatada entre formuladores de políticas e gestores públicos nos países clientes. Além disso, o Banco também é um grande contratante no mercado internacional de consultorias, pagando alto por papers encomendados a especialistas escolhidos exatamente porque, de modo geral, têm afinidade com as ideias que o Banco dissemina.

Por sua vez, consultorias ao Banco também resultam em prestígio aos contratados, abrindo-lhes portas no seleto mercado de “especialistas em desenvolvimento”.

No Brasil, longe de ser pontual ou episódica, a atuação intelectual do Banco é vasta, contínua e abrange todos os setores do desenvolvimento. Mediante um processo de alargamento institucional e mudança incremental, o Banco, criado em 1944, hoje tem incidência na definição de políticas de educação, saúde, energia, política macroeconômica e fiscal, políticas sociais, infraestrutura, gestão urbana, desenvolvimento rural, meio ambiente e administração pública.

O tipo de pesquisa que o Banco faz se parece com a melhor pesquisa técnica, mas na verdade é altamente enviesada e prescritiva a respeito do que os governos devem ou não fazer em matéria de políticas públicas. A atividade de pesquisa com frequência é usada para fazer proselitismo da agenda política do próprio Banco, sem ter uma visão balanceada das evidências e sem expressar o ceticismo adequado.

Além disso, a instituição há anos pratica um narcisismo agudo, respaldando as suas pesquisas em investigações do próprio Banco ou encomendadas por ele. Assim, enquanto um documento depende do outro para sua evidência e argumentação, um corpo interno de conhecimento é produzido e reforçado, amalgamando ideias e práticas e desencorajando o dissenso interno.

Pesquisa e política são inseparáveis no cotidiano do Banco. Se o Banco Mundial fosse apenas um agente financeiro, o seu corpo de funcionários poderia ser reduzido a apenas um décimo. Na verdade, o dinheiro sempre funcionou como instrumento de indução do produto principal: ideias e prescrições sobre o que fazer em matéria de desenvolvimento capitalista.

A institucionalização de ideias e prescrições exige, por sua vez, a organização de um clima político e intelectual hospitaleiro pelo mundo afora, razão pela qual o Banco investe bastante em relações públicas, pesquisa, atividades de capacitação profissional e articulação com instituições internacionais, agências bilaterais, órgãos públicos, fundações empresarial-filantrópicas e organizações não governamentais (ONGs) nos Estados clientes.

Noticiou-se que o relatório em questão teria sido encomendado por Joaquim Levy, então ministro da fazenda. Isso é plausível, pois assistimos ao ajuste econômico iniciado pelo segundo governo de Dilma Rousseff que foi amplificado pelo governo Temer e combinado com reformas regressivas para a imensa maioria da população. É normal autoridades governamentais fazerem esse tipo de solicitação, com o fim de respaldar suas próprias opções políticas e, assim, derrotar ou dividir a oposição interna a medidas impopulares. Por outro lado, o Banco costuma afirmar que trabalha apenas quando demandado pelos Estados clientes, o que é falso.

Essa questão remete ao tipo de relação existente entre o Banco e os Estados clientes. Parte considerável da esquerda vê essa relação como mera imposição unilateral, como se os Estados fossem “vítimas” do Banco. Porém, a realidade é bem mais complexa do que isso. Na verdade, a atuação do Banco combina permanentemente coerção e persuasão, operando em escala internacional e nacional. Para entendê-la é necessário levar em conta três aspectos.

Primeiro, a relação do Banco com os países clientes não se limita ao governo e às agências estatais, mas envolve também organizações da sociedade civil. Segundo, os Estados clientes não são iguais em capacidade de negociação. Países pobres altamente endividados, cujos governos disponham de pouca margem de manobra, terão uma relação com o Banco (e com o FMI) diferente de países como China, Brasil ou Rússia. Terceiro, o Banco não é um mero emprestador de recursos, mas sim um ator político, intelectual e financeiro, combinando a concessão de empréstimos com assistência técnica para definição e desenho de políticas públicas, farta produção intelectual e liderança política em matéria de políticas globais de desenvolvimento.

A atuação do Banco Mundial não se dá no vazio, mas sim em meio a uma densa rede de relações que envolve agentes nacionais e internacionais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais. Tais agentes, com meios e níveis de influência distintos, apoiam, propõem, adaptam, negociam e veiculam as ideias e prescrições do Banco Mundial.

Nessa interação, com frequência o discurso e as práticas do Banco aportaram e aportam argumentos e recursos para dirimir conflitos entre atores políticos e consolidar posições de poder e convicções ideológicas próprias. Nesse sentido, nada melhor para determinado governo ou fração política interna utilizar as recomendações ou mesmo as condicionalidades de empréstimo do Banco como argumentos de autoridade para defender a implantação de reformas impopulares.

Dessa perspectiva, podemos dizer que a eficácia das ações do Banco Mundial necessita da construção de visões de mundo e interesses mútuos tanto na sociedade civil como no aparelho de Estado, dentro e fora dos espaços nacionais.

O relatório do Banco foi produzido pela equipe da própria instituição e por consultores externos contratados. Ao que parece, versões preliminares circularam entre quadros políticos e técnicos do governo federal, do congresso e de entidades públicas como o IPEA.

Certamente, há sintonia fina entre a pauta de contrarreformas do governo Temer e a agenda política do Banco Mundial. Isso evidencia que as prescrições relatório não são exclusivas do Banco. Há setores políticos e econômicos do país interessadíssimos em demolir direitos sociais, econômicos e trabalhistas arduamente conquistados.

Essa agenda de demolição de direitos da maioria tem obtido vitórias exatamente porque não é apenas do Banco Mundial, mas sim de um espectro variado de atores econômicos, políticos e sociais. Sem um intenso trabalho de persuasão, combinado com desinformação sistemática, manipulação de evidências e desqualificação de propostas contrárias, esse tipo de agenda não seria implantada por governos eleitos democraticamente.

Por outro lado, temos visto cotidianamente que não devemos jamais subestimar a vontade e a capacidade da classe dominante brasileira (e seus representantes políticos) de pilharem o Estado e a maioria da população, produzindo maldades inomináveis contra o povo.

O Brasil é mais importante para o Banco Mundial do que o inverso. Em termos financeiros, o Brasil não precisa de empréstimos do Banco. Ainda assim, historicamente, o país é um dos cinco maiores clientes da instituição. Por quê? Isso só mostra que a atuação do Banco é muito mais vasta do que a mera atividade financeira.

Por exemplo, o Banco tem uma atividade intensa e capilarizada no âmbito da reforma da administração pública brasileira, inclusive porque se relaciona diretamente com estados e municípios, e não apenas com a União. Evidentemente, para o Banco, o fato de o governo federal acolher suas prescrições e traduzi-las em políticas públicas é muito importante, servindo como vitrine para a sua replicação pelo mundo afora.

A agenda política do Banco Mundial se concentra na liberalização das economias nacionais, na privatização do patrimônio público e dos serviços públicos em geral e na promoção de ajustes macroeconômicos e fiscais que, invariavelmente, incidem negativamente sobre a ampla maioria da população, privilegiando os setores mais abastados da sociedade, em particular o capital financeiro. Ocorre que tudo isso vem revestido de uma ideia particular de justiça, centrada no combate à pobreza.

Resumidamente, quem pode pagar por serviços públicos deve pagar, e quem ainda não pode pagar deve dispor de programas sociais focalizados durante um tempo. Num país como o Brasil, onde a exploração da força de trabalho sempre foi desmedida, milhões trabalham na informalidade, o salário mínimo é baixo, a estrutura da propriedade da terra é altamente concentrada e a estrutura tributária é profundamente injusta, essa agenda apela à ideia de “combate à pobreza” para, exatamente, tentar legitimar o rebaixamento de direitos sociais e trabalhistas. Nessa lógica, quem ganha três salários mínimos e tem carteira assinada já é considerado “privilegiado”. Na verdade, quem não estiver entre os “mais pobres entre os pobres” já é visto como tal.

Durante a década de 1990, o Banco Mundial internalizou a ideia de combate à pobreza extrema na agenda neoliberal, por meio de programas pontuais de alívio compensatório e, depois, na década de 2000, programas de transferência de renda condicionada e transitória, que figuram como mecanismos auxiliares da liberalização e privatização das economias nacionais. Não há contradição, para o Banco, em defender a aplicação do receituário econômico neoliberal e, ao mesmo tempo, colocar-se na posição de paladino do combate à miséria. Na verdade, é em nome do combate à miséria ─ cujos programas são extremamente baratos, se comparados à remuneração do sistema financeiro via endividamento público ─ que o ajuste econômico hard avança.

A limitação das políticas sociais à ideia de “combate à pobreza” segue uma espécie de pobretologia, segundo a qual o que importa é matematizar a pobreza, calcular o número de pobres e fazer programas cada vez mais focalizados. A ação do Banco nas últimas décadas foi decisiva para institucionalizar, na arena internacional, uma maneira de pensar e fazer política social, baseada na separação teórica entre produção da pobreza e produção da riqueza e na noção de mínimos sociais.

É claro que programas de transferência de renda direta e condicionada são indispensáveis, dada a magnitude da fratura social brasileira. O problema é que, em nome da governabilidade e da aceitação de certos cânones econômicos tidos como universais, o desenho das políticas sociais conforme tais referências deixa de lado a discussão sobre como a riqueza nacional é produzida e apropriada, de forma radicalmente desigual, por grupos e classes sociais.

Na discussão sobre distribuição de renda, a referência do Banco é sempre a linha de pobreza, nunca a “linha de riqueza”, razão pela qual a sua pregação aponta, invariavelmente, para o rebaixamento dos salários e dos direitos sociais, econômicos e trabalhistas.

É como se o mundo da riqueza, em particular o da extrema riqueza financeira e patrimonial, não tivesse nada a ver com o mundo da pobreza. Em outras palavras, para o Banco a necessidade de ajustar a política social a uma função “bombeira” de amortecimento de conflitos sociais se combinou à oportunidade de reconfigurar o uso e os fins do fundo público, a fim de rebaixar o patamar de direitos sociais ― arduamente conquistados por décadas de pressão dos trabalhadores ― e abrir a própria política social (saúde, educação, etc.) ao capital privado.

Para o Banco Mundial e para a classe dominante brasileira, cada vez mais a blindagem política e jurídica da extrema riqueza depende da sua invisibilização enquanto problema social e tema de investigação e debate público. A rigor, não há novidades de fundo no relatório.

* Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor de “O Banco Mundial como Ator Político, Intelectual e Financeiro (1944-2008)” (Civilização Brasileira, 2010) e “A Política de Reforma Agrária de Mercado do Banco Mundial (Hucitec, 2010)”. Organizou, junto com Marcela Pronko, “A Demolição de Direitos: Um Exame das Políticas do Banco Mundial para a Educação e a Saúde (1980-2013)” (EPSJV-FIOCRUZ, 2014).