A falha fatal do neoliberalismo, uma economia de má qualidade

Deve-se rejeitar a doutrina neoliberal nos seus próprios termos por ser economia de má qualidade, dispara Dani Rodrik, professor de Política Econômica Internacional da Escola de Governo John F. Kennedy, de Harvard.

margareth tatcher

O artigo intitulado “Salvando a economia do neoliberalismo”, escrito por Dani Rodrik, professor de Política Econômica Internacional da Escola de Governo John F. Kennedy, de Harvard, divulgado no começo do mês, é objeto de intenso debate na Europa e nos Estados Unidos na mídia convencional, nos sites e nos blogs, tanto os considerados desenvolvimentistas quanto os neoliberais.

O texto “viralizou”, como se diz no jargão da internet, isto é, ganhou enorme e inesperada repercussão, ainda mais surpreendente por tratar de tema árido. O autor acertou na mosca, disse o jornal The Guardian, ao identificar a falha fatal do neoliberalismo: é uma economia de má qualidade, segundo os cânones da dita ciência econômica.

“Neoliberalismo e suas prescrições usuais – sempre mais mercados, sempre menos governo – são de fato uma perversão da economia dominante”, sintetiza o jornal. CartaCapital selecionou abaixo os excertos do artigo de Rodrik:

Como até seus críticos mais severos admitem, o neoliberalismo é difícil de caracterizar. Em termos gerais, denota uma preferência pelos mercados em vez do governo, incentivos econômicos em lugar das normas sociais ou culturais e empreendedorismo privado em substituição a ações coletivas ou comunitárias.

Tem sido usado para descrever um amplo espectro de fenômenos – de Augusto Pinochet a Margaret Thatcher e Ronald Reagan, dos Democratas de Clinton e do Novo Trabalhismo da Grã-Bretanha à abertura econômica na China e à reforma do Estado de Bem-Estar Social na Suécia.

O termo é usado como designação genérica para qualquer coisa que remeta a desregulamentação, liberalização, privatização ou austeridade fiscal.

Hoje é um impropério rotineiramente utilizado como atalho para se referir às ideias e às práticas que produziram insegurança e desigualdade econômicas crescentes, levaram à perda de nossos valores e ideais políticos e até precipitaram a forte reação populista atual.
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O uso do termo “neoliberal” explodiu na década de 1990, quando foi associado estritamente a dois desenvolvimentos. Um foi a desregulamentação financeira, que culminaria na crise financeira de 2008 – a primeira que os Estados Unidos experimentaram desde o período entreguerras – e na ainda persistente debilidade da Zona do Euro.

A segunda foi a globalização econômica, que se acelerou graças aos fluxos livres de finanças e a um novo e mais ambicioso tipo de acordo comercial. A financeirização e a globalização tornaram-se as manifestações mais evidentes do neoliberalismo no mundo de hoje.

O fato de o neoliberalismo ser um conceito escorregadio e mutante, sem um lobby explícito de defensores, não significa que seja irrelevante ou irreal. Quem se atreveria a negar que o mundo experimentou uma mudança decisiva em relação aos mercados a partir da década de 1980?

Ou que os políticos de centro-esquerda – democratas nos Estados Unidos, socialistas e social-democratas na Europa – aprovaram com entusiasmo alguns dos credos centrais do Thatcherismo e do Reaganismo, como a desregulamentação, a privatização, a liberalização financeira e a empresa individual?
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Mas a frouxidão do termo neoliberalismo significa também que a sua crítica muitas vezes perde a referência. Não há nada de errado com os mercados, o empreendedorismo privado ou os incentivos – quando implantados adequadamente.

Seu uso criativo está por trás das realizações econômicas mais significativas do nosso tempo. Enquanto nos esquivarmos simplesmente do neoliberalismo, correremos o risco de jogar fora algumas das suas ideias úteis.

O problema real é que a economia dominante se camufla muito facilmente em ideologia, restringindo as escolhas que aparentemente temos e fornecendo soluções convencionais.
Uma compreensão adequada da economia que está por trás do neoliberalismo nos permitiria identificar – e rejeitar – a ideologia quando se disfarça de ciência econômica. Mais importante ainda, isso nos ajudaria a desenvolver a imaginação institucional de que nós realmente precisamos para reformular o capitalismo para o século XXI.

O neoliberalismo é tipicamente entendido como baseado em princípios-chave da ciência econômica predominante.
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Considere, entretanto, os direitos de propriedade. Eles são importantes na medida em que proporcionam retornos sobre os investimentos. Um sistema ótimo distribuiria direitos de propriedade para aqueles que fizessem o melhor uso de um bem e proporcionaria proteção contra aqueles que mais provavelmente expropriariam os seus retornos.

Os direitos de propriedade são bons quando protegem os inovadores dos parasitas, mas são ruins quando os protegem da concorrência. Dependendo do contexto, um regime legal que fornece os incentivos apropriados pode parecer bastante diferente do regime-padrão de direitos de propriedade privada dos EUA.

Isso pode parecer firula semântica com pouca importância prática, mas o fenomenal sucesso econômico da China deve-se em grande parte ao seu processo institucional que desafia a ortodoxia. A China voltou-se para os mercados, mas não copiou práticas ocidentais em direitos de propriedade.

Suas reformas produziram incentivos baseados no mercado por meio de uma série de arranjos institucionais inusuais que se adaptaram melhor ao contexto local.

Por exemplo, em vez de se mover diretamente da propriedade estatal para a privada, que teria sido obstruída pela fraqueza das estruturas legais vigentes, o país confiou em formas mistas de propriedade que proporcionavam direitos de propriedade mais efetivos para os empreendedores na prática.

O Programa de Empresas de Municípios e de Aldeias (Township and Village Enterprises – TVEs), que liderou o crescimento econômico chinês durante os anos 1980, era de propriedade coletiva e controlado pelos governos locais.

Embora fosse de propriedade pública, os empresários recebiam a proteção de que precisavam contra a expropriação. Os governos locais tinham participação direta nos lucros das empresas e, portanto, não queriam matar o ganso que botava ovos de ouro.

A China confiou em uma série dessas inovações, cada uma delas colocando em prática os princípios econômicos do mais alto nível dos economistas em arranjos institucionais inéditos.

A precificação de mão dupla, por exemplo, que manteve a obrigatoriedade da entrega de grãos ao Estado, mas permitiu que os agricultores vendessem o excedente de produção em mercados livres, provia incentivos do lado da oferta, enquanto isolava as finanças públicas dos efeitos adversos da liberalização total.
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Alguns poderiam alegar que as inovações institucionais da China foram puramente transitórias. Talvez tivessem de convergir para as instituições de estilo ocidental, para que o seu progresso econômico fosse sustentável.

Mas essa linha de pensamento comum negligencia a diversidade dos arranjos capitalistas que ainda prevalecem entre as economias avançadas, apesar da considerável homogeneização do nosso discurso político.

Mas o que são, afinal, instituições ocidentais? A importância do setor público, por exemplo, no clube dos países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) varia de um terço da economia na Coreia para quase 60% na Finlândia.

Na Islândia, 86% dos trabalhadores são membros de um sindicato; o número comparável na Suíça é de apenas 16%. Nos Estados Unidos, as empresas podem demitir trabalhadores quase à vontade; as leis trabalhistas francesas exigem que os empregadores passem por várias etapas primeiro.

Os mercados de ações cresceram para quase uma vez e meia a renda nacional nos Estados Unidos; na Alemanha, eles são apenas quase um terço, representando a metade da renda nacional.

A ideia de que qualquer um desses modelos de tributação, relações trabalhistas ou organização financeira seja inerentemente superior às demais é desmentida pelos diversos resultados econômicos que cada uma dessas economias experimentou nas últimas décadas.

Os Estados Unidos passaram por sucessivos períodos de angústia, em que suas instituições econômicas foram julgadas inferiores às da Alemanha, Japão, China e agora possivelmente às da Alemanha, mais uma vez. Certamente, níveis comparáveis de riqueza e produtividade podem ser obtidos sob modelos muito diferentes de capitalismo.
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Os economistas estudam uma realidade social que é diferente do universo físico dos cientistas naturais. É completamente criada pelo homem, altamente maleável e opera de acordo com diferentes regras ao longo do tempo e do espaço.

A economia avança não por meio do estabelecimento do modelo certo ou da teoria correta para responder a tais questões, mas melhorando a nossa compreensão da diversidade de relações causais.

O neoliberalismo e seus remédios habituais – sempre mais mercados, sempre menos governo – são de fato uma perversão da economia dominante. Os bons economistas sabem que a resposta correta para qualquer questão em economia é: depende.
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Os economistas tendem a ser muito bons para traçar mapas, mas não são bons o suficiente para escolher o mais adequado à tarefa em questão. Quando confrontados com questões de política… uma quantidade excessiva deles recorre a modelos de referência que favorecem o laissez-faire.

As soluções intuitivas e a arrogância substituem a riqueza e a humildade da discussão travada nas salas de seminários. John Maynard Keynes definiu a economia como a “ciência do pensamento em termos de modelos unida à arte de escolher modelos que são relevantes”. Os economistas normalmente têm problemas com a parte “arte”.

Alguns economistas se esmeram em exibir as joias da coroa da profissão de forma imaculada – eficiência do mercado, mão invisível, vantagens comparativas – e em blindá-las do ataque dos bárbaros egoístas, a saber, os protecionistas.

Infelizmente, esses economistas geralmente ignoram os bárbaros do outro lado da questão – financistas e corporações multinacionais cujos motivos não são mais puros e que estão todos prontos para sequestrar essas ideias em seu próprio benefício.

Como resultado, as contribuições dos economistas para o debate público são muitas vezes tendenciosas em uma direção, a favor de mais comércio, mais finanças e menos governo.

É por isso que os economistas desenvolveram uma reputação como líderes de torcida do neoliberalismo, mesmo que a economia geral esteja muito longe de ser um hino ao laissez-faire. Os economistas que deixaram correr solto o seu entusiasmo pelos mercados livres na verdade não estão sendo fiéis à própria disciplina.

Como, então, devemos pensar sobre a globalização para libertá-la das práticas neoliberais? Precisamos começar pela compreensão do potencial positivo dos mercados globais. O acesso aos mercados mundiais em bens, tecnologias e capital tem desempenhado um papel importante em praticamente todos os milagres econômicos do nosso tempo.

A China é o exemplo mais recente e poderoso dessa verdade histórica, mas não é o único caso. Antes da China, milagres similares foram realizados pela Coreia do Sul, Taiwan, Japão e alguns países não asiáticos, como o Chile e as Ilhas Maurício. Todos esses países abraçaram a globalização em vez de virar as costas para ela, e se beneficiaram generosamente.

Os defensores da ordem econômica existente apontarão rapidamente esses exemplos quando a globalização for questionada. O que eles deixarão de dizer é que quase todos esses países se juntaram à economia mundial, violando restrições neoliberais. A China protegeu o seu grande setor estatal da concorrência global, estabelecendo Zonas Econômicas Especiais onde empresas estrangeiras poderiam operar com regras diferentes das do resto da economia.

Só uma alternativa mais de acordo com o espírito da reunião mundial de 1944 em Bretton Woods pode salvar a globalização da hiperglobalização (Foto: AP)
Coreia do Sul e Taiwan subsidiaram fortemente seus exportadores, o primeiro país por meio do crédito e o último com incentivos fiscais. Todos eles acabaram removendo a maioria de suas restrições de importação, muito depois de o crescimento econômico ter decolado.

Mas nenhum, com a única exceção do Chile na década de 1980 sob Pinochet, seguiu a recomendação neoliberal de uma rápida abertura às importações.

O experimento neoliberal do Chile produziu a pior crise econômica em toda a América Latina. Embora os detalhes sejam diferentes em cada país, em todos os casos, os governos desempenharam um papel ativo na reestruturação da economia e na sua defesa em um ambiente externo volátil. As políticas industriais, as restrições aos fluxos de capital e os controles cambiais – tudo isso proibido na cartilha neoliberal – foram desenfreados.

Em contrapartida, os países que se aproximaram mais do modelo neoliberal da globalização ficaram muito decepcionados.
O México fornece um exemplo particularmente triste. Após uma série de crises macroeconômicas em meados da década de 1990, o país adotou a ortodoxia macroeconômica, liberalizou amplamente sua economia, liberou o sistema financeiro, reduziu consideravelmente as restrições à importação e assinou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).

Essas políticas produziram estabilidade macroeconômica e um aumento significativo no comércio exterior e no investimento interno. Mas naquilo que conta – na produtividade geral e no crescimento econômico – o experimento falhou. Desde a realização das reformas, a produtividade geral no México estagnou e a economia tem um desempenho inferior, mesmo pelos padrões modestos da América Latina.

Esses resultados não são uma surpresa da perspectiva dos fundamentos econômicos. Eles são mais uma manifestação da necessidade de que as políticas econômicas respondam aos fracassos aos quais os mercados são propensos e sejam adaptadas às circunstâncias específicas de cada país. Nenhum modelo único se encaixa.

Antes de a globalização rumar para o que poderíamos chamar de hiperglobalização, as regras eram flexíveis e isso era admitido. Keynes e seus colegas viam o comércio internacional e o investimento como meios para alcançar os objetivos econômicos e sociais domésticos – pleno emprego e prosperidade ampla –, quando projetaram a arquitetura econômica global em Bretton Woods, em 1944. No entanto, a partir da década de 1990, a globalização tornou-se um fim em si mesmo.

Os arranjos econômicos globais foram então impulsionados pelo foco único na redução das restrições aos fluxos de bens, capital e dinheiro através das fronteiras nacionais – embora isso não tenha acontecido em relação aos fluxos de trabalhadores, onde os ganhos econômicos de fato teriam sido muito maiores.

Essa perversão de prioridades revelou-se na forma como os acordos comerciais começaram a chegar através das fronteiras e a refazer as instituições domésticas. Os regulamentos de investimento, as normas de segurança e saúde, as políticas ambientais e os sistemas de promoção industrial tornaram-se passíveis de eliminação, se fossem considerados obstáculos ao comércio e ao investimento estrangeiro.

As grandes empresas internacionais, brindadas com um grau de liberdade inédito pelas novas regras, adquiriram privilégios especiais. Os impostos sobre as empresas deveriam ser reduzidos para atrair investidores (ou impedi-los de sair).

As empresas estrangeiras e os investidores receberam o direito de processar governos nacionais em tribunais offshore especiais, quando as mudanças nas regulamentações nacionais ameaçassem reduzir seus lucros.

Em nenhum aspecto o novo acordo foi mais prejudicial que na globalização financeira, que não produziu maiores investimentos e crescimento, como prometido, mas uma crise dolorosa atrás da outra.

Assim como a economia necessita ser salva do neoliberalismo, a globalização precisa ser salva da hiperglobalização. Uma globalização alternativa, mais sintonizada com o espírito de Bretton Woods, não é difícil de imaginar: reconhece a multiplicidade de modelos capitalistas e, portanto, permite aos países moldar seus próprios destinos econômicos.

Em vez de maximizar o volume do comércio e de investimento estrangeiro e harmonizar as diferenças regulatórias, tem foco nas regras que gerenciam a interface de diferentes sistemas econômicos. Assim, abre espaço político para os países avançados e para aqueles em desenvolvimento também.
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Os neoliberais não estão errados quando argumentam que os nossos ideais mais apreciados são mais prováveis de ser alcançados quando a nossa economia é vibrante, forte e está crescendo. Onde eles estão errados é em acreditar que existe uma receita única e universal para melhorar o desempenho econômico ao qual eles têm acesso.
A falha fatal do neoliberalismo é que ele nem sequer é portador da economia correta. Ele deve ser rejeitado nos seus próprios termos pelo simples motivo de que é uma economia ruim.