Cortes nos programas do campo afetam vida dos trabalhadores rurais

 Somente o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), considerado como um dos estruturadores da reforma agrária e agricultura familiar, acumula cortes de 71%.

trabalhador rural

Há alguns anos, o casal de trabalhadores rurais Regiane Menezes de Souza, de 39 anos, e Zelitro da Silva, de 56 anos, militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), garantiam a renda familiar com a produção de alimentos em seu lote, no assentamento São Bento, localizado no município de Mirante do Paranapanema, no Oeste de São Paulo.

Hoje, a situação é bem diferente. Regiane e Zelitro tiveram que interromper sua produção neste ano depois que deixaram de ser fornecedores do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), programa criado para garantir uma política de compra da agricultura familiar pelo governo federal a preços justos.

“Assim como a gente, todas as famílias dos assentamentos foram afetadas. Se a família deixa de vender, também para de produzir e, por consequência, para de comer esse alimento. Tínhamos como perspectiva nos organizar através das nossas cooperativas e produzir alimentos saudáveis para todos a partir desse programa. Seu corte interfere na organização dos trabalhadores e essa é a intenção, porque quando estamos organizados temos uma força muito maior”, afirma Regiane.

A história da família de Regiane e Zelitro é uma das que comprovam na prática o impacto dos cortes dos programas destinados à reforma agrária e à agricultura familiar, como o PAA, depois do golpe de estado instaurado no país no ano passado. No município em que eles moram, Mirante do Paranapanema, somente 20 famílias, de dois assentamentos, conseguiram manter a condição de beneficiários fornecedores do programa. Mirante reúne cerca de 31 assentamentos, com mais de 1500 famílias, o maior número entre os municípios do Pontal do Paranapanema, região que compreende 32 cidades e mais de 30 mil pessoas assentadas.

De acordo com o professor Carlos Alberto Feliciano, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o corte dos programas sociais no campo é uma forma de tentar limitar a luta das famílias e movimentos sociais pela reforma agrária. “Existem três principais formas de atacar a luta: através da criminalização dos militantes e dos movimentos sociais, por meio de regulamentações que penalizam e inibem a organização dos sujeitos e também pela desarticulação de programas de crédito e incentivo aos trabalhadores rurais. Todas essas são estratégias institucionais para desmobilizar as pessoas e tentar despolitizar a luta pela reforma agrária que estamos vendo hoje”, explica.

Desde que Michel Temer (PMDB) assumiu a presidência, o programa social, considerado pelo MST como um dos estruturadores da reforma agrária e da agricultura familiar, acumula cortes exorbitantes, que somam cerca de 71%, passando de um investimento de mais de R$ 32 milhões em 2015, para aproximadamente R$ 3 milhões no primeiro semestre de 2018, de acordo com o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) que foi apresentado para o próximo ano.

Para Cido Maia, assentado no município de Presidente Bernardes, o montante destinado ao PAA hoje é insignificante. “Vivíamos um período de entusiasmo no campo com esse programa porque ele funcionava na prática, sem muitas burocracias. Ele mudou a maneira como as famílias dos assentamentos lidavam com sua roça. Elas passaram a diversificar a produção porque tinham como vender. Depois viam aquela produção tão bonita, sem agrotóxico, e se alimentavam melhor também. Hoje vemos tudo isso ir por água abaixo. O golpe está esmagando o homem do campo aos poucos” afirma.

De acordo com o professor da Unesp, Antônio Thomaz Júnior, o programa foi criado partir de um diálogo do governo Lula com os movimentos sociais do campo, que reivindicavam uma política que estabelecesse preços mínimos para a comercialização dos produtos da agricultura familiar. Para o MST, ainda que o programa seja considerado um grande avanço, poderia ter mais potencial se fosse ampliado e se tornasse uma política de Estado.

“Não foi incorporado como lei, isso permitiu seu desmantelamento pelo governo golpista. Essa burguesia que estava descontente com os rumos da economia resolveu apoiar o golpe e cortar na carne todas as conquistas sociais. Tudo isso tem implicações muito sérias para o país como um todo”, explica.

O PAA foi criado em 2003, no primeiro governo de Lula, com recursos dos extintos Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A intenção era incentivar a agricultura familiar e a distribuição de alimentos para pessoas atendidas pela rede de assistência social e para locais que fornecem alimentos à população, como presídios, restaurantes universitários, escolas, hospitais, igrejas e quartéis.

Por meio do programa, agricultores familiares, assentados da reforma agrária, indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos tradicionais, podem se cadastrar como beneficiários fornecedores, de forma individual ou coletiva, por meio de cooperativas. No caso dos assentamentos, a participação no programa se dá via associações e cooperativas de produtores, principalmente, pela facilidade de organização coletiva da produção, da venda e da prestação de contas.

Ao longo dos anos, a maior parte dos registros dos membros das cooperativas passou a ter mulheres como responsáveis. Da produção até a distribuição e a venda dos alimentos, as mulheres passaram a assumir todas as tarefas. De acordo com Regiane, que é membro do coletivo regional de gênero do MST, isso se deu por meio do incentivo do governo federal, com a criação de uma modalidade da Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP) voltada às mulheres, e também porque foi uma preocupação do movimento estimular que ocupassem espaços públicos de protagonismo.

Para ela, o desmantelamento do PAA impacta também nesse processo de organização das trabalhadoras rurais. “Há a paralisação de alguma forma, mas também temos que pensar que as mulheres estão em outra condição. Embora tenha um processo sendo interrompido, a mulher percebe que é preciso continuar avançando e que não dá para ficar parada. A percepção de que é possível se mobilizar não retrocede, nunca”, acrescenta.

Uma das saídas encontradas pelo coletivo regional de mulheres do MST para garantir uma pequena renda às famílias é produzir pães, bolos e massas para vender nas cidades vizinhas aos assentamentos. Outras famílias continuam a vender alimentos de sua horta em feiras e pequenos mercados. Porém, como destaca Cledson Mendes, do setor de produção do MST, o corte do PAA impacta também nas pequenas vendas porque interfere na economia local.

“Antes a maioria das famílias dos assentamentos tinha acesso a um dinheiro garantido por mês, que usavam para fazer suas compras e garantir a sobrevivência. Com o corte dessa renda, as pessoas deixam de comprar, o comércio da cidade míngua, assim, todo mundo sente no bolso o peso da crise”, explica.

Ele destaca que algumas famílias têm conseguido se manter através da venda semanal de cestas de alimentos produzidos no assentamento Gleba XV de Novembro, localizado no município de Rosana, fruto de uma parceria com professores e estudantes da Unesp de Presidente Prudente. No entanto, o número de vendas ainda é pequeno se comparado a grande quantidade de famílias que precisam garantir a renda mensal. Somente no assentamento Gleba XV, o segundo maior do estado, com cerca de 600 famílias, apenas 20 participam do projeto de venda de cestas na universidade.

Outra saída apontada por Cledson como forma de comercialização dos produtos cultivados nos assentamentos é a Feira da Reforma Agrária, realizada mensalmente em Presidente Prudente. A feira conta com a participação de cerca de 40 produtores e venda média de 800 quilos de alimentos por mês. “A feira é uma forma de dialogar com a sociedade e mostrar que é possível produzir comida sem veneno, de qualidade e com preço bem acessível, além de ser uma alternativa de geração de renda para as famílias. Mas as vendas estão bem abaixo do que as famílias produzem e do número de famílias que precisam vender”, explica.

Como complementa Kelli Mafort, da direção nacional do MST, é importante lembrar que os efeitos negativos dos cortes do PAA não são sentidos só pelas trabalhadoras e trabalhadores rurais, mas pela população como um todo. “A falta de políticas públicas para a agricultura familiar traz consequências diretas na produção de alimentos. Sabemos que assentados e pequenos produtores detêm uma pequena quantidade de terras e, mesmo assim, são responsáveis por 70% da alimentação que chega nas mesas dos brasileiros. Retirar investimentos da reforma agrária é violentar toda a população”, conclui.