Irlanda: a velha liderança tem seu fim 

O político e líder do Sinn Féin, Gerry Adams, anunciou na semana passada que se vai se afastar do cargo de presidente do partido, após uma das carreiras mais longas e importantes na história da política Irlandesa. Resta, agora, análisar sua atuação no decorrer da história Irlandesa e de seu movimento independentista, e o que sua saída representa para a política do país 

gerry adams - Rex

Crescido em Ballymurphy, onde participou de trabalhos voluntários em um gueto católico em West Belfast, Adams tornou-se comandante do provisório Exército Republicano da Irlanda (“Irish Republican Army”- IRA) antes mesmo de se tornar uma figura pública no republicanismo irlandês. Sua saída da liderança de Sinn Féin é um dos momentos mais significantes na história recente do partido.

Para seus apoiadores, Adams foi o responsável pelo sucesso político da Sinn Féin; para antigos aliados, agora desiludidos, ele é apenas um oportunista que abandonou princípios fundamentais por conveniência. Seus maiores críticos na mídia irlandesa ficarão satisfeitos em não precisar mais falar do político, mas o alívio de sua partida dividirá espaço com a consciência de que Adams fez mais do que todos para levar o IRA ao cessar-fogo permanente. Ele sai do Sinn Féin em um momento delicado para ambos os lados da fronteira irlandesa, deixando para trás questões a serem respondidas sobre qual será a estratégia política daqui em diante.

Óglach Adams

Se Gerry Adams fosse um político convencional, poderíamos dizer que sua entrada na linha de fronte da política data de 1983. Foi nesse ano em que ele foi eleito pela primeira como deputado de West Belfas, em Westminister, entrando no lugar de Ruairí Ó Brádaigh como presidente do Sinn Féin. Trinta e cinco anos seria um período impressionante para qualquer carreira política. Mas Adams já era uma figura central na política irlandesa a mais de uma década quando ocupou pela primeira vez o cargo para o qual foi eleito.

Sua verdadeira estreia no palco da política aconteceu em junho de 1972, quando foi libertado da prisão de Long Kesh para dialogar com o governo britânico. A liderança do IRA insistiu que, para que uma trégua com o exército britânico fosse adiante, seria necessário libertar Adams. Apesar dos argumentos de Adams, os outros jovens de 23 anos sem perfil público não recebiam a mesma importância sem estar intimamente envolvidos na campanha de guerrilha do IRA.

Frank Steele, um oficial que participou das negociações, declarou mais tarde que esperava que Adams fosse “um arrogante e jovem assassino”, quando na verdade acabou julgando-o “um homem muito simpático, inteligente, articulado e autodisciplinado” que “obviamente teria um ótimo futuro, fizesse o que fizesse”. Isso muito diz tanto em relação aos preconceitos da classe dominante britânica quanto de Adams. Suas qualidades como líder eram evidentes para amigos e inimigos, desde o início.

Nos primeiros anos do Movimento Provisório, Adams ajudou a superar uma lacuna geracional. O republicanismo em Belfast e Derry era uma tradição marginal, mantida viva por um grupo de famílias- como, por exemplo, seu pai Gerry Adams Sr., que havia servido para o IRA na década de 1940. Esses veteranos forneceram o núcleo organizacional do movimento rejuvenescido no início da década de 1970, mas seu ímpeto era muito mais novo: muitos eram ainda adolescentes quando se juntaram ao IRA. Martin McGuinness, que mais tarde se tornou um componente vital para a equipe de liderança formada no entrono de Adams, foi responsável pelo IRA de Derry, quando tinha apenas seus 21 anos.

Adams era alguns anos mais velho do que esses jovens militantes, o que lhe conferiu uma vantagem em termos de experiência política, além do fato de já ser ativista republicano quando a violência explodiu no verão de 1969. Mais tarde ele escreveu com entusiasmo sobre o papel do IRA- sob liderança de Cathal Goulding- no ativismo comunitário durante o final da década de 1960. Quando o movimento se separou no final de 1969, Goulding orientou o IRA marxista em direção ao ativismo social, enquanto seus rivais, os “Provo”, tomaram as armas contra o governo britânico. Adams se uniu aos Provos, enxergando a campanha militar como essencial para a causa republicana. Contudo, ele nunca se esqueceu dos debates da década de 60, e se baseou neles quando ficou claro que a luta armada por si só não iria fazer com que entregassem o que queriam.

Nova saída

Adams passou a primeira metade da década de 1970 na prisão ou fugindo; ficou conhecido no Belfast IRA, ao lado de homens como Ivor Bell e Brendan Hughes. Ele estava em Long Kesh quando a liderança do Provo declarou um segundo cessar-fogo. Então começou a escrever artigos para o jornal Republican News usando o nome de “Brownie” e mudando sua abordagem. As colunas de Brownie argumentavam que os republicanos deveriam ampliar seu repertório, construindo um movimento político ao lado do IRA, que pudesse se envolver em lutas sindicais e comunitárias, as quais ele batizou de “resistências econômicas”. Adams citou livremente escritores de esquerda como Desmond Greaves, Michael Farrell e Eamonn McCann, embora continuasse se distanciando do marxismo. A guinada para a esquerda tinha a intenção de ser um complemento a luta armada, mas não a substituir.

Após seu lançamento em 1976, Adams estava pronto para desafiar a velha guarda do movimento republicano. Sua facção prometeu que não haveria mais cessar-fogo sem que os britânicos se comprometessem em deixar a Irlanda para sempre. Seu grupo ganhou reputação de militaristas “linha-dura”. A ideia de uma Irlanda federal com um parlamento Ulster, adotada pelo presidente do Sinn Féin, Ruairi Ó Brádaigh foi abortada como protesto a favor do sindicalismo. Ó Brádaigh e seus aliados foram implacavelmente marginalizados pelo Provos, unido a Adams. Em uma dramática inversão de papeis que revela muito sobre a jornada política de Adams, mais tarde Ó Brádaigh se tornou um dos principais críticos quando liderou o Sinn Féin durante o processo de paz da década de 1990.

A luta armada continuou na década de 1980, mas o desejo de fortalecer a ala política do movimento permanecia forte. O período foi dominado pela batalha travada por prisioneiros republicanos em busca de status político, que culminou com as greves de fome de 1981. Inspirando-se nas ideias de grupos de extrema-esquerda, como a Democracia Popular e o Partido Socialista Republicano Irlandes, o Provos começou a construir uma ampla campanha de apoio aos prisioneiros, que se tornou um dos maiores movimentos de massa da história irlandesa. Quando principal grevista de fome, Bobby Sands foi eleito para Westminister de sua cela em uma eleição parcial, o tabu do Sinn Féin sobre a política eleitoral foi quebrado, preparando o caminho para a ascensão do partido.

Na eleição de Westminister de 1983, o Sinn Féin ganhou mais de 40%da votação nacionalista. Foi um sucesso notável, que demonstrou o potencial de uma estratégia eleitoral para Adams e seus companheiros de liderança. Mas também provou a eficiência da estratégia dupla de “as armas e as urnas”. Com o passar do tempo, as contradições entre a guerrilha do IRA e o crescimento político a Sinn Féin tornaram-se cada vez mais evidentes. O apoio a campanha do IRA foi limitado a uma minoria de nacionalistas em fortalezas republicanas como Derry, West Belfast e South Armagh. Além desses círculos, havia um teto que Sinn Fién nunca poderia quebrar enquanto a guerra continuava. As ações controversas do IRA, como o atentado com bomba que matou 11 civis em Enniskillen em 1987, causariam um impacto direto nas perspectivas eleitorais do Sinn Féin.

No fim, o avanço desejado nas urnas não se materializou. No Norte, os nacionalistas de classe média do Partido Social Democrata (SDLP) conseguiram manter seu status conta o Sinn Féin. Ao sul da fronteira, os republicanos tinham poucas perspectivas eleitorais: independentemente da simpatia que pudesse haver pela sua causa, a vontade das pessoas que o conflito acabasse se sobrepunha a vontade de que a vitória fosse do IRA.

Adeus às armas 

Nós provavelmente nunca vamos saber o momento exato em que Adams e seu grupo decidiu que a campanha do IRA teria que ser encerrada. Nos anos 80 ficou claro que uma vitória definitiva estava longe do alcance do IRA. Os republicanos “linha dura” perceberam um afrouxamento com o compromisso da luta armada. Adams enfrentou uma acusação daquele que foi um dos seus aliados mais próximos, Igor Bell, referente a recursos aumentados que ele estava usando para a campanha eleitoral. Alguns líderes do IRA queriam usar uma grande quantidade de armas e munições vindas da Líbia para travar uma guerra dramática, com a esperança de provocar uma crise sem saída para o governo britânico na Irlanda. Se essa estratégia tivesse sido realizada, é quase certo que teria terminado em uma derrota turbulenta.

Adams não estava disposto a correr esse risco. Na mão contrária, ele começou a se aproximar do SDLP e do governo irlandês, na esperança de forjar uma unidade pan-nacionalista mais ampla. Conversas secretas tiveram início com o governo britânico. Com o ANC e a OLP também se envolvendo em processos de paz no começo da década de 1990, os republicanos sentiram-se mais confortáveis ao se afastarem dos meios tradicionais para resolver o problema. No momento em que o IRA declarou cessar-fogo em 1994, ficou claro que qualquer acordo fruto das conversações estaria longe do que o Provos dizia defender. A declaração de Downing Street emitida pelos governos britânico e irlandês em dezembro de 1993, insistindo para que não houvesse alteração no status constitucional da Irlanda do Norte sem o consentimento da maioria, reafirmou o “veto sindicalista” que os republicanos se comprometeram em revogar.

O acordo da Sexta-feira Santa de 1998 deixou o futuro do governo britânico indefinido, mas garantiu aos nacionalistas seu lugar por meio do governo regional de poder compartilhado. Esse foi precisamente o tipo de acordo de paz rejeitado pelo Provos nos anos anteriores. Em troca de seu comprometimento, o Sinn Féin encontrou portas abertas na política de ambos os lados do Atlântico. O crescimento eleitoral constante foi em seu devido tempo. Em 2001 o partido havia ultrapassado o SDLP no Norte, deslocando a liderança da classe média, comandada pela Igreja Católica. O simbolismo dessa mudança não passou despercebida por Adams, que declarou, com algum amargor, sobre a hierarquia de classes entre os nacionalistas:

“Uma experiência comum para as pessoas da minha idade foi frequentar as escolas de gramática, onde éramos impecavelmente preparados e sabatinados. Logo depois algumas pessoas se tornavam bispos, padres paroquianos, líderes do SDLP- entre outras posições ‘responsáveis’. Você se acostuma a ouvir toda essa conversa sobre líderes ‘responsáveis’: regras de comportamento elaboradas pelo Cardial aos católicos, como, por exemplo, que deveríamos estar envolvidos em campanhas de habitação porque, se não o fizéssemos, homens violentos vão preencher esses lugares. Esse é o motivo mais não cristão para se envolver em uma causa justa. Há um padrão em tudo isso, no qual o establishment católico procura por figuras ‘seguras’ e ‘responsáveis’. E por isso o seu esnobismo, porque as pessoas que compõem o Sinn Féin não foram treinadas nas nossas escolas para ocupar cargos de liderança”.

Contudo, quando o Sinn Féin conquistou o melhor da elite católica, não o fez enfatizando a política de classes; ao contrário, foi minimizando as fraturas sociais na comunidade nacionalista e adotando grande parte da agenda do SDLP.

A estratégia de paz que sustentava esses avanços políticos exigia uma grande destreza. Adams queria trazer o máximo de voluntários do IRA que ele conseguisse, mostrando-se um líder sutil e persuasivo enquanto guiava o movimento para um novo caminho. Houve divisões ao longo desse percurso, mas nenhuma das facções dissidentes foi capaz de lançar uma grande campanha. Não há dúvida de que a liderança republicana era dissimulada em vários aspectos, mas essa não teria sido suficiente se houvessem partidários do IRA que acreditassem na guerrilha como caminho para a vitória. Mesmo os críticos mais ferrenhos de Adams reconheceram que a luta armada teve um fim natural.

Um partido ou um governo?

Embora não tivessem a intenção de voltar para a guerra, o Provos queria usar o IRA como barganha nas negociações o quanto fosse possível. Eles resistiram à pressão para que desativassem ser arsenal até 2005, quando o Sinn Féin sofreu intensa pressão após um assalto ao Banco do Norte, assumido pelo IRA, além do assassinato de Robert McCartney pelos membros do IRA de Belfast. Em 2007, o Sinn Féin finalmente tomou seu lugar no governo regional da Irlanda do Norte ao lado do Partido da União Democrática (DUP), de Ian Paisley. Mas foi Martin McGuinness, e não Adams, quem liderou a equipe ministerial do partido.

Enquanto isso, no Sul, o Sinn Féin tornou-se uma grande força eleitoral pela primeira vez. Nas eleições gerais de 2002 o partido mais do que duplicou os seus votos e ganhou cinco lugares no Dáil. Dois anos mais tarde, Mary Lou McDonald, ex-membra da Fianna Fáil, foi eleita para o parlamento europeu do Sinn Féin em Dublin.

No período pós cessar-fogo o partido parecia não parar- grande parte dos comentários sobre as eleições de 2007 focaram em debater a formação de uma coalização política. No horizonte estava a possibilidade de trabalhar com o Fianna Fáil, e então a liderança do partido preparou-se para abandonar a sua plataforma de tributação progressiva durante a campanha. O resultado foi a estagnação. Em vez de fazer um verdadeiro avanço na política do Sul, o Sinn Féin perdeu uma das suas cinco cadeiras.

Não houve muito tempo para refletir sobre a perda: com a grande crise mundial, a economia da Irlanda entrou em colapso, oferecendo uma nova oportunidade ao Sinn Féin. O partido criticou duramente aqueles que estavam governando Dublin e os programas levados a cabo pela Troika (aliança de três personagens do mesmo nível e poder que se reúnem para a gestão de uma entidade ou para completar uma missão), constituindo-se, dessa forma, como a principal voz anti-austeridade no Sul. O partido também mudou sua posição quanto a uma coalização. À medida em que o Partido Trabalhista se aproximava de um acordo com a direita, Gerry Adams declarou que tinha “o dever de não apoiar a Fianna Fáil ou Fine Gael” e que, portanto, deveria fazer parte de um “novo alinhamento”. “O domínio desse Estado por dois grandes partidos conservadores”, declarou, “pode ter um fim”.

Em 2011, Adams mudou sua base de Belfast para Louth, onde ganhou um assento no Dáil. O movimento foi destinado a dar ao grupo parlamentar do Sinn Féin maior perspicácia política, embora Adams não causasse grande impacto como orador. As intervenções mais notáveis do partido no parlamento vieram de deputados mais jovens, como Mary Lou McDonald, Pearse Doherty e, mais recentemente, Eoin Ó Broin.

A presença de Adams no Dáil estava sendo um problema e também um triunfo. Ele foi perseguido por acusações de seu ex-camarada Brendan Hughes no envolvimento no assassinato de Jean McConville, uma mulher de meia idade raptada e morta pelo IRA em 1972. Adams deve responder por um caso muito sério, mas políticos do Fine Gael, Fianna Fáil e do partido do Trabalho usaram cinicamente a morte de McConville para desviar das críticas voltadas para as suas políticas econômicas impopulares.

A classe política do Sul nunca realmente esperou que o Sinn Féin se tornasse uma força eleitoral importante em seu próprio estado. Aprovaram alegremente um acordo que colocou o partido no governo ao norte da fronteira, mas descobriram tardiamente um sentimento de indignação moral pelas vítimas dos atentados e da guerra- reservada apenas para aqueles que foram mortos pelo IRA. As revelações sobre atos cometidos pelos acordos ilegais entre forças do governo britânico e paramilitares leais nunca despertaram o mesmo interesse ou compaixão. Adams tornou-se o alvo principal dessa indignação seletiva, e não conseguiu neutraliza-la de forma efetiva.

No caminho errado

O afastamento de Adams facilitará a análise de quanto todos esses fatores representaram obstáculos para o crescimento do Sinn Féin no Sul. Desde as eleições gerais de 2016, o partido voltou a se encontrar. Seus 13,8% dos votos foram uma decepção após a alta afirmada nas pesquisas eleitorais de 2014 e 2015, quando parecia superar o Fianna Fáil como o segundo maior partido da Irlanda. O mais provável, agora, é que o Féin se torne parceiro júnior do Fianna no governo.

Isso faz um forte contraste com 2015, quando Adams insistiu que “o Sinn Féin não irá se aliar com ninguém como parceiro júnior”. Claramente Adams não sente o dever que ele conferiu ao Partido do Trabalho, para que não “sustentassem” o Fine Gael, ou ele simplesmente acredita que o Fianna Fáil deveria posicionar-se da mesma forma que o seu partido.

Na realidade, nada disso deveria surpreender. Para Gerry Adams e o movimento que ele mesmo contruiu, as questões sociais são u meio para um fim: são úteis na medida em que promovem a perspectiva de unificação irlandesa, do contrário, são descartáveis. Sob sua liderança, o Sinn Féin chegou o mais perto possível de seu principal objetivo. Quando Adams prometeu, ainda nesse ano, que seu partido faria um referendo sobre a unidade irlandesa dentro de 5 anos, não era apenas para exibir-se. Em meio às consequências do Brexit, com o sindicalismo historicamente fraco no Norte e o conflito desaparecendo da memória do eleitorado do Sul, um referendo é cada vez mais plausível. O tipo de Irlanda que teríamos, isso é outra história.

Antes de escolher se entrará no governo do Sul, o Sinn Féin terá seu trabalho de impedir os conservadores britânicos e seus aliados do DUP de destruir o que resta do acordo da Sexta-Feira Santa anulado. Adams pode estar se retirando de um papel de liderança formal, mas ainda não será possível escrever sua biografia política por alguns anos.