Consciência negra é coisa de preto?

A história de resistência do povo negro encontrou no 20 de novembro sua data de celebração, mas o mito da democracia racial ainda faz crer que essa luta não tem sentido.

Por Pai Rodney

Sessão solene na Câmara fará reflexão sobre racismo

Afinal, por que precisamos do Dia da Consciência Negra? E consciência negra é só pra negros? Qual a dificuldade em entender o sentido da data? Perguntas oportunas, necessárias, especialmente quando se percebe que alguns setores sempre ameaçam se rebelar contra o feriado e ainda há cidades que o revogam sem o menor constrangimento.

Gostaria muito que me dissessem por que Zumbi, que assim como Tiradentes é um herói nacional, não merece um feriado. E gostaria mais ainda de ver um presidente da República fazer História e decretar o Dia da Consciência Negra feriado no Brasil inteiro. Seria uma medida emblemática que daria não só a dimensão do legado de Palmares, mas colocaria no patamar adequado a história de luta e resistência do povo negro deste País. Nas palavras cantadas por Luís Carlos da Vila: "é preciso a atitude de assumir a negritude pra ser muito mais Brasil!" Mas se fosse simples já estaria feito.

Além dos quilombos remanescentes, há territórios negros que continuam evocando a herança de Palmares. São espaços de preservação e disseminação cultural, como os terreiros de Candomblé, afoxés, maracatus e escolas de samba. Nesses territórios, a memória coletiva segue viva e é essencial para a construção das identidades negras, que, na maioria das vezes, permanecem na triste condição da invisibilidade ou, mais grave, são combatidas pela sociedade e pelo poder público.

Assumir uma data para celebrar a negritude vai de encontro ao ideário de embranquecimento, que busca expurgar o sangue negro e limpar a raça brasileira. É a mesma ideologia que cria e sustenta a ilusão de que não existe racismo no Brasil e que serve como base para muitos argumentos que questionam a necessidade e a importância do Dia da Consciência Negra. No fundo, a estratégia de fragmentar sua identidade e dificultar que o povo negro atue enquanto grupo tem sido a consequência mais perversa do mito da democracia racial.

Quando dizem, por exemplo, que “alma não tem cor”, “precisamos de consciência humana, não de consciência negra”, “a questão é social”, percebe-se claramente que não conhecem a dimensão do problema. Mais da metade da população brasileira convive com a exclusão e a vulnerabilidade. Não se trata apenas de denunciar uma situação social gravíssima, mas de reconhecer que é a exclusão e não a presença do negro o fator determinante no entrave e no baixo desenvolvimento do país, ao contrário do que se propagou desde o fim da escravidão.

Nos últimos tempos, denunciar o racismo, o machismo, a intolerância religiosa ou a homofobia virou “vitimismo”. Esse neologismo infame, além de mostrar a superficialidade dos discursos, dilui o sentido da exclusão e da desigualdade que, de fato, determinam os lugares sociais de negros e de outras minorias, comprovando que existe uma elite que pretende manter as coisas como estão, aliás, como sempre foram.

Quando negros e negras denunciam situações de racismo, muitas vezes são “confortados” com certas frases feitas, do tipo: “mas você é um moreno lindo”; “mas você tem que ser superior a isso”, “a cor da pele não quer dizer nada”, ou ainda “isso é coisa da sua cabeça”, “você tem complexo de inferioridade”. Não se pode esquecer que quem sofre o racismo é o corpo negro, porque é impossível despir-se da própria pele. Portanto, é o corpo negro que toma tiro, é o corpo negro que não se vê representado, é o corpo negro que não tem oportunidade, é o corpo negro que vira estatística.

Disfarçar o racismo com esse negócio de “consciência humana” é o mesmo que revigorar o mito da democracia racial e condenar o povo negro a outros séculos de exclusão e desigualdade. A consciência tem que ser negra, e antes que qualquer um venha falar do que é justo ou injusto, vistam minha pele. Se alma tem cor, apesar de sacerdote, eu realmente não sei, até porque não é a alma que toma tiro da polícia, não é a alma que não recebe oportunidade de emprego, não é a alma que leva pedrada e apanha quando ousa carregar as insígnias dos orixás, não é a alma que só se vê como subalterno nas novelas da tevê.

O corpo tem cor, os símbolos da religião negra têm cor. O corpo e a cultura do negro são discriminados, olhados com toda carga de preconceito. Antes de falarmos em consciência humana ou dizermos que alma não tem cor, temos que ter a boa vontade de compreender e de vencer racismo velado, que sempre faz questão de dizer que a luta do povo negro não tem sentido.

Há negros de todas as cores. Existem, porém, muitos negros que não sabem que são negros. Mais do que necessária, a consciência negra é uma condição para impedir que nossa sociedade racista aponte do pior jeito a cor da nossa pele, nossos traços ou nossa origem (por exemplo, jogando bananas para jogadores de futebol que nem se autodeclaravam negros). Além disso, uma vez forjados de orgulho e resistência, podemos reagir ao racismo sem permitir que determinem nosso lugar no mundo.

Neste país, todo negro é um sobrevivente. Sobrevivemos a toda sorte de adversidade, ao descaso, à violência, à miséria, às doenças, às piores condições de trabalho, aos piores salários, à falta de assistência, à discriminação. Sobrevivemos à escravidão, ao massacre da nossa cultura, à perseguição da nossa religião, a humilhações históricas e cotidianas.

Precisamos do Dia da Consciência Negra para que todos os brasileiros possam pensar no país que querem construir. Precisamos deste dia para simplesmente celebrar o orgulho do povo negro: o orgulho de ter sobrevivido!