Na Argentina, o fascismo veste terno italiano

O humorista Peter Capusotto, sempre certeiro para traduzir o espírito da época na Argentina, ratificou o que muitos denunciam na política e no jornalismo. Com um vídeo publicado recentamente, “Fascismo moderado”, Capusotto usa a ironia e o sarcasmo para expor aquilo que na realidade cotidiana é bem mais amargo.

Por Rogério Tomaz Jr.*

Maurício Macri - Reuters

Com presos políticos, entre eles Milagro Salas, deputada do Parlasul e dirigente do movimento Tupac Amaru, e Jones Huala, líder da luta Mapuche contra Luciano Benetton na Patagônia, e diversos políticos oposicionistas presos, em todos os casos sem qualquer condenação, a Argentina experimenta sob o governo de Maurício Macri uma versão light do fascismo que vigorou entre 1976 e 1983.

Em vez de fardas e botas, ternos italianos e sapatos de couro bem lustrados. No lugar dos tribunais de exceção com julgamentos farsescos e execuções sumárias com desaparecimentos das vítimas, a execração pública nos grandes meios a partir de prisões preventivas que obedecem à lógica do espetáculo e ignoram os princípios elementares do direito.

As vítimas mais recentes do que Cristina Kirchner chama de “Partido Judicial” foram o deputado nacional Julio De Vido e o seu ex-vice-presidente Amado Boudou.

O primeiro teve a prisão decretada cinco dias antes das eleições legislativas de outubro. Embora a ordem tivesse que passar pela Câmara, que deveria aprovar a perda de foro do parlamentar, o objetivo de influenciar o voto foi explícito.

“O encarceramento de De Vido resulta como a única alternativa viável para garantir o êxito dessa investigação”, registra a ordem assinada por três juízes. Os magistrados ignoraram o fato de que o réu, que fora ministro do Planejamento durante os governos kirchneristas, tem comparecido a todas as audiências e jamais foi acusado de dificultar as investigações.

No dia em que a Câmara aprovou o seu desaforo, De Vido saiu do seu gabinete direto para o tribunal do qual saiu a ordem de sua detenção. Isso frustrou parte do show midiático, pois mais de trinta policiais, com armamento pesado, coletes à prova de bala e até passa-montanha foram enviados à residência do legislador e entraram no imóvel como se buscassem um perigoso terrorista.

Com Boudou, o macrismo não vacilou. A polícia o prendeu em seu apartamento e os agentes chegaram a posar para fotos com o réu, acusado de enriquecimento ilícito e, ressalte-se, sem nenhuma condenação até o momento, algemado como se fosse um perigoso narcotraficante surpreendido em seu bunker secreto. Qualquer semelhança com o que se passa no Brasil não é mera coincidência e o célebre jurista Eugenio Zaffaroni, ex-integrante da Suprema Corte argentina, fale em “Operação Condor judicial”.

No encerramento da campanha para a recente eleição, da qual seu grupo saiu vitorioso, Macri parecia dar um recado ao referir-se aos líderes kirchneristas e sindicalistas como “cúmplices da corrupção do governo anterior” e “sócios do narcotráfico” que “vão terminar como os narcos, todos presos”.

O líder da aliança Cambiemos deve contar com a memória curta da população. À frente do Boca Juniors, clube que presidiu entre 1995 e 2007, não teve pudor de ir ao presídio La Picota, em Bogotá, para encontrar Miguel Rodríguez Orejuela, à época o chefão do Cartel de Cáli. O objetivo do encontro, ocorrido em 1997: negociar a compra de um jogador do América, então um dos clubes mais fortes do continente.

Também foi alvo do presidente a procuradora-geral da República, Alejandra Gils Carbó, que não resistiu quase dois anos de ataque e anunciou sua renúncia na última segunda-feira 30. Macri usou o Congresso para tentar derrubar a funcionária pública e chegou a lamentar publicamente que Gils Carbó “insista em permanecer no cargo”, como se o mandato para a chefia do Ministério Público fosse um mero detalhe.

O “fascismo moderado” não se restringe ao campo judicial. No primeiro mês de governo, Macri assinou uma série de decretos para acabar com a eficácia da Lei de Meios e permitir a expansão do monopólio do Clarín. Para colocar não apenas um, mas dois nomes de sua confiança na Suprema Corte e para acabar com mecanismos de proteção à moeda e à indústria nacionais, como a restrição da compra de dólares.

Ademais, e apesar do silêncio quase unânime da mídia sobre os episódios, dezenas de cidadãos foram presos durante manifestações contra o governo. Apenas em uma das marchas que exigiu a aparição com vida do jovem Santiago Maldonado, houve 23 detenções.

Ao menos três foram detidos – e exibidos como troféus pela ministra de Segurança, Patrícia Bullrich – por supostas ameaças nas redes sociais ao presidente ou a integrantes da cúpula macrista. O cúmulo foi a truculenta prisão de duas mulheres, legalmente casadas, por terem se beijado numa estação de metrô. O casal passou três dias encarcerado sem acreditar que a Argentina vive uma democracia. Tal como ocorreu com a morte de Maldonado, a polícia argentina tem carta branca para desencorajar atos que afrontem a moral e os bons costumes tão apreciados pelas viúvas do regime de exceção interrompido com a eleição de Raul Alfonsín.

No enfrentamento com jornalistas, vazou uma acusação de Macri a Horacio Verbitsky – colunista do Página 12, presidente da Fundação Gabriel Garcia Márquez de Novo Jornalismo e do Centro de Estudos Sociais e Legais (CELS) – como a pior “lacra” do país, termo pesado equivalente a “rato” no jargão político brasileiro. Além disso, o presidente teria dito que algumas pessoas na Argentina deveriam ser enviadas à lua, o que foi tomado como ameaça pelo jornalista e militante de direitos humanos.

Profissionais de grande audiência críticos ou não alinhados à gestão macrista foram demitidos de seus veículos por pressão explícita do governo. Os casos mais emblemáticos são os de Victor Hugo Morales e de Roberto Navarro, que despontam há décadas em emissoras de rádio e tevê e passaram pelo “ajuste” midiático promovido pela turma de Macri, com uso político da verba publicitária. O Página 12, aliás, sofreu um corte de 70% da verba que lhe cabia.

Para suprimir direitos, a ditadura civil-militar iniciada com Videla precisou eliminar 30 mil opositores. Agora, para aprovar suas reformas ultraneoliberais, como a trabalhista, baseada naquela que Temer impôs no Brasil, Macri parece querer amedrontar todos os seus críticos.
“Se a prisão preventiva ilegal é a regra estamos todos em liberdade condicional”, resumiu, certeiro, o cineasta argentino Gustavo Carbonell.