Em Mariana, a vida resiste

Um olhar sobre o cotidiano dos atingidos pelo grande crime ambiental; e o papel da Universidade, para combater a propaganda das empresas que falam em “acidente”

Por Ananda Martins Carvalho*

Desastre em Mariana MG - Divulgação

A tarde daquela quinta-feira corria como outra qualquer. Crianças na escola começavam a se agitar para o fim da aula, o senhor de idade levantava do seu costumeiro repouso, trabalhadores retornavam da jornada. Porém, de maneira abrupta, aquilo que alguns temiam se realizou. Por volta das 15 horas e 30 minutos, no município de Mariana, a estrutura da barragem de rejeitos minerários de Fundão, de propriedade da Samarco (Vale/ BHP Billiton) rompeu-se e aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de lama invadiram o leito dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. Em meio a muita poeira e barulhos estrondosos as famílias que moravam à jusante receberam o anúncio. Em questão de minutos, viram a aproximação de uma montanha de lama, que arrombava as portas das casas, derrubava as paredes, arrastava as árvores e os carros. Quem conseguiu, correu com a roupa do corpo para o lugar mais alto que podia alcançar. Para trás foram deixados animais, plantações, casas, documentos, algum retrato de família, algum brinquedo de infância, um objeto de sorte, uma carta de amor.

Os rejeitos da barragem de Fundão levaram dezenove pessoas e provocaram um aborto. Arrasaram os vilarejos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo e boa parte das localidades de Ponte do Gama, Paracatu de Cima, Pedras, Borba e Campinas, em Mariana, além do município de Barra Longa. Na paisagem, a destruição emergiu sob a forma de paredes incompletas e telhados retorcidos, portes de luz e árvores marcados de lama, móveis e objetos pessoais espalhados pelo chão em desconexo arranjo. Entre Mariana e o mar de Regência, no Espírito Santo, os rejeitos percorreram mais de 600 quilômetros, deitando flora e fauna e atropelando a medida do tempo que faz com que as transformações na paisagem se sucedam de modo compassado aos dias.

Passados dois anos desde o dia 5 de novembro de 2015, o desastre remanesce ao longo da bacia do Rio Doce sobre as vidas atingidas. Em Mariana, aqueles que foram retirados de casa seguem habitando moradias alugadas pela Samarco. Distante dos lugares e dos vizinhos que aprenderam a chamar de seus, vivem em casas e apartamentos provisórios, sem os quintais que se acostumaram a cultivar ou com os animais que foram ensinados a criar. Dispersados em bairros distintos na zona urbana de Mariana, atingidas e atingidos que construíram suas vidas na estreiteza da relação com a terra hoje lidam com a hostilidade de outros moradores da cidade, que os responsabilizam pela falta de empregos. Além disso, o cotidiano é atribulado pelas intensas e infindáveis reuniões que, quase diariamente, ocorrem para definir o futuro em vocabulários técnicos, distinto daqueles aprendidos pelos atingidos.

Aos que continuam habitando distritos como Pedras e Campinas, subsiste a convivência com um rio tingido, que não mais reconhece as histórias de quem cresceu nadando em suas águas. Por ali, as afetações são várias. Em Pedras, por exemplo, os moradores passaram a lidar com o som incessante dos caminhões contratados pela Samarco para as obras no leito do rio. Em Campinas, muitos perderam áreas de plantação ou de criação de animais. Passaram a receber silagem (para alimentar animais) da Samarco, mas esta, por mais de uma vez, chegou estragada aos destinatários.

No novo cotidiano dos atingidos, persiste a incerteza sobre suas futuras condições de vida. Passados dois anos, as negociações ainda estão sendo travadas sobre as indenizações e a reconstrução das comunidades e indiciam estender-se. Contudo, neste cenário de violações, resistências emergem. A voz que denuncia a demora nas reparações durante as reuniões e os cartazes na porta do Fórum de Mariana antes de alguma audiência pública são exemplos disso. Outros gestos, carregados de simbolismo e fé, apontam uma resistência que se faz lembrando os laços fortes com a terra: a celebração da primeira missa no terreno eleito para a reconstrução do Bento, as festas do Menino Jesus e de Nossa Senhora Aparecida em Paracatu de Baixo e a festa de Nossa Senhora das Mercês em Bento Rodrigues são alguns dos vários momentos em que os atingidos retornam aos lugares para lembrá-los como seus.

Nos vários pontos da bacia do Rio Doce, incertezas continuam, assim como em Mariana: sobre a qualidade da água ingerida, sobre o risco de colher o que cresce próximo ao rejeito, sobre a extensão e magnitude das afetações. Informações contraditórias proliferam sem que tragam qualquer forma de alento. Sobre a extensão do desastre, basta uma pesquisa rápida na internet para verificarmos que nem mesmo quanto aos nomes das localidades atingidas há um consenso claro e ampla divulgação por parte do Estado. Sobre a noção de desastre, também não, já que ainda há quem o denote como a um acidente e/ou evento, eximindo as empresas de suas responsabilidades.

No cenário em que se proliferam incertezas, é papel da Universidade construir conhecimentos que colaborem para a aproximação quanto às múltiplas afetações sobre sujeitos e coletividades ao longo da bacia, bem como sobre as características físicas dos lugares transformados. É também papel da Universidade agir na construção de um vocabulário que não corrobore com a fraseologia sobre o desastre como acidentee/ou evento, mas como processo que segue através da perpetuação de violências. Sobretudo, cumpre à Universidade trabalhar para que o desastre componha nossa memória social enquanto pertencentes a um país historicamente dependente da mineração e de um modelo de desenvolvimento que segue provocando feridas.