Mercadante contesta decisão de Cármen Lúcia sobre redação do Enem

O ex-ministro da Educação, Aloizio Mercadante, condenou com veemência a decisão da ministra Cármen Lúcia, que liberou redações com conteúdo intolerante e até racista nas provas do Enem.

Mercadante

Abaixo, a nota de Mercadante:

Com o crescente avanço da violência, do radicalismo e da falta diálogo entre as pessoas, a educação coloca-se como instrumento fundamental de prevenção e resgate de uma cultura de paz, tolerância e convivência respeitosa, valores civilizatórios consagrados em todo mundo. Por isso, é imprescindível a contestação das decisões jurídicas, que mantiveram a suspensão de item do edital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que atribuía nota zero, sem correção de seu conteúdo, à prova de redação considerada ostensivamente desrespeitosa aos direitos humanos.

Mesmo que não seja possível reverter esse grave retrocesso, que contou com uma reação tímida do Ministério da Educação, para o Enem de 2017, uma vez que a prova de redação já ocorreu no último domingo (5), precisamos olhar para o futuro. E, não tenho dúvidas, que não avançaremos como sociedade sem o resgate desses valores tão fundamentais para o país. É preciso refletirmos sobre o tipo de cidadãos que estamos formando. Basta lembrar que uma das comemorações de um parlamentar sobre essa decisão foi a de se referir aos diretos humanos como “esterco da vagabundagem”.

Já havia me manifestado publicamente contra tamanho retrocesso na educação brasileira, iniciado com a decisão do desembargador federal Carlos Moreira Alves, que fere compromissos internacionais que o país assumiu no plano da defesa dos direitos fundamentais do homem, base da qualquer democracia. Em respeito aos milhões de estudantes que realizaram as provas do Enem, decidi voltar ao tema só agora, depois de passado o exame de redação, para não aumentar a tensão e a insegurança e não contribuir com a turbulência, em um momento tão decisivo e importante na vida dessas pessoas.

Mas, não posso deixar de reafirmar que em uma sociedade democrática, a educação está indissoluvelmente associada aos direitos humanos. Nessas sociedades, a educação não visa apenas ao preparo técnico e intelectual dos alunos, mas também, e sobretudo, ao exercício da cidadania, o que implica, necessariamente, aprender a respeitar os direitos de todos os cidadãos, independentemente de raça, gênero, orientação sexual, crença religiosa, condição social etc.

Ao contrário do que afirma, de modo obtuso, o movimento Escola sem Partido, que questionou na justiça essa regra do Enem, tal associação indissolúvel entre educação e direitos humanos não tem nada de ideológico e não se constitui em apanágio de partidos específicos. Na realidade, a característica intrínseca dos direitos humanos tange justamente a sua universalidade, que perpassa regimes de todos os matizes políticos e ideológicos.

Por isso, em sociedades democraticamente avançadas, ninguém questiona esse laço indissolúvel entre educação e direitos humanos e as medidas educativas e legais destinadas à promoção e proteção dos direitos universais da pessoa humana. Na Alemanha, por exemplo, é proibido se fazer propaganda do nazismo e do racismo e promover discursos de ódio, sob pena de prisão.

Devemos reafirmar que o Brasil tem compromisso com a proteção e promoção dos direitos humanos, inserido em diversos tratados internacionais dos quais somos signatários, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU) e o Pacto de San José (OEA), entre vários outros instrumentos. Essa decisão ganha contornos ainda mais dramáticos, em um contexto no qual o ilegítimo Temer flexibilizou portaria que tratava das regras e da fiscalização do trabalho escravo no país.

É preciso lembrar que, em razão desse compromisso essencial, o Brasil aprovou, em 2006, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Nesse plano, reconhece-se que a educação em direitos humanos é um desafio central da humanidade, que tem importância redobrada em países da América Latina, caracterizados historicamente pelas violações dos direitos humanos, expressas pela precariedade e fragilidade do Estado de Direito e por graves e sistemáticas violações dos direitos básicos de segurança, sobrevivência, identidade cultural e bem-estar mínimo da população.

Assim sendo, a preservação dos direitos humanos na redação do Enem está em perfeita sintonia com a Constituição Cidadão de 1988, com os tratados internacionais relativos a direitos humanos e com próprio Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Trata-se de norma que visa proteger nossos estudantes contra a violência e os discursos de ódio, que agridem a democracia brasileira e os direitos humanos de toda a população, independentemente de inclinações ideológicas e políticas. É uma regra democrática e civilizada.

Agora, com o avanço de mais esse retrocesso, é instaurada, por força de decisão judicial, uma regra que flexibiliza o rigor no respeito aos direitos humanos e evidentemente favorece os discursos de ódio e a apologia da violência e do preconceito. E quem profere discursos de ódio agride a liberdade manifestação do outro. Configura-se um verdadeiro contrassenso que a manifestação do preconceito e da violência seja permitida com base no direito à livre expressão. Qual o caráter educativo dessa flexibilização no respeito aos direitos tão essenciais da cidadania e da democracia?

Não podemos aceitar esse retrocesso antidemocrático, antieducativo e anticivilizatório. É importante reagir e defender a educação, os direitos humanos e a democracia.

Por fim, não podemos deixar de registrar que todo o retrocesso e os desmontes que o golpe gerou na educação já se refletem no Enem 2017, que registrou 30,2% de ausentes, o maior índice desde 2009. Certamente, esse percentual é resultado da crise, mas seguramente dos cortes no Fies, no fim do Ciência Sem Fronteiras e da paralisação da expansão e da asfixia financeira das universidades federais.

O grande gargalo para os mais pobres acessarem e permanecerem no ensino superior no Brasil sempre foi e continua sendo a renda. Por isso, nos governos Lula e Dilma, expandimos as universidades e os institutos federais públicos, criamos o ProUni e reformulamos o Fies e o Enem, gerando cerca de 5 milhões de novas vagas universitárias, a maior expansão da história.

Com a crise e com os cortes, impostos pelo golpistas nas políticas públicas de inclusão educacional, cada vez mais, continuaremos retrocedendo e aumentando nossa histórica e gigantesca demanda reprimida por educação superior. E, ao que parece, acompanhada de atrasos em valores essenciais para a educação, como o integral respeito aos direitos humanos no processo de formação de nossa juventude.

Aloizio Mercadante, ex-ministro da Educação