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Madrinha das HQs underground mapeia produção de quadrinistas mulheres

Trina Robbins fez e faz história: Estados Unidos, setembro de 1986. Enquanto o mercado dos quadrinhos prosperava com foco nos rapazes nerds, as autoras mulheres e as histórias voltadas para o público feminino eram tão raras quanto uma revistinha do Super-homem sem socos e onomatopeias

Trina Robbins

Até aquele ano, a própria Mulher Maravilha, primeira super-heroína das HQs, jamais havia sido desenhada por uma mulher. Ninguém sabe explicar como ou porquê, mas de repente uma mulher baixinha e irritadiça de 48 anos e cabelos bem curtos ganhou controle da personagem. Seu nome: Trina Robbins.

“Acho que os editores se juntaram e disseram ‘que diabos, vamos chamar a Trina para desenhar, todo mundo sabe que ela adora a Mulher Maravilha. Se ela ferrar tudo, George Perez [desenhista da DC Comics] vai dar um jeito’”, conta. A série The legend of wonder woman, de quatro volumes, fez história por ser a primeira aventura da heroína desenhada por uma mulher, mas Trina mal se deu conta disso. “Na época nem me ocorreu. Era apenas agradável desenhar minha heroína favorita dos quadrinhos.”

Embora se orgulhe do feito, hoje a quadrinista não gosta de ser reconhecida por isso. Quando é questionada sobre The legend of wonder woman, costuma dar uma resposta amarga: “Não criei a Mulher Maravilha, foi algo pequeno em minha vida e sou muito maior que ela”. Realmente: aos 79 anos, Trina é uma das cartunistas mais consagradas dos Estados Unidos, tendo sido uma das poucas mulheres a participar dos quadrinhos da contracultura, os Comix, onde desafiou quadrinistas considerados misóginos e bem estabelecidos até hoje.

Mais recentemente, Trina parou de fazer história e passou a contá-la: tornou-se uma respeitada historiadora, especialista em quadrinhos feitos por mulheres, um posto que antes dela simplesmente não havia sido preenchido. “Nenhum dos historiadores de quadrinhos se preocupava em escrever sobre mulheres. Só queriam saber de Stan Lee e Jack Kirby [conhecidos como fundadores da Marvel Comics]. Não foi algo planejado, apenas fui lá e ocupei um buraco que precisava ser ocupado”, recorda.

Ela também fez parte da primeira coletânea de HQs feministas, publicou o quadrinho pioneiro protagonizado por um casal lésbico e chegou a criar um livro com tirinhas sobre HIV – a Strip AIDS U.S.A – A collection of cartoon art to benefit people with AIDS (1988), o primeiro sobre o assunto nos Estados Unidos, com artes de nomes como Frank Miller e Will Eisner.

Mito dos quadrinhos

Por escolha própria, Trina não produz quadrinhos há 30 anos. É que, para ela, recuperar e reiterar a existência de cartunistas mulheres tornou-se trabalho em tempo integral, mais importante até do que a própria arte: “Simplesmente cansei de ouvir que meninas e mulheres não leem ou desenham quadrinhos, então me propus a provar que estavam errados”. Com esta missão, Trina abandonou os materiais artísticos e começou uma extensa pesquisa para mapear artistas do sexo feminino – autodenominando-se herstorian, ou historiadora do feminino.

Em sua obra mais recente, Pretty in ink (2013), sem versão brasileira, Trina cobre a história dos quadrinhos feitos por mulheres desde 1896 até os dias atuais, trazendo dados sobre a participação feminina na área. Ela mostra, por exemplo, que, entre 52 novos artistas contratados pela DC Comics em 2011, só 1% eram mulheres. “Levou muito tempo até as editoras mainstream entenderem que há, sim, mulheres interessadas em quadrinhos”, diz a autora, que considera o momento atual como “o melhor possível para o meio dos quadrinhos”.

Seu primeiro livro sobre o assunto, Women and the comics, a history of female comic-strip and comic-book creators, escrito em parceria com Catherine Yronwode, seria publicado em 1993. Pela primeira vez, mulheres se empenhavam em pesquisar e escrever sobre quadrinistas mulheres: “Logo de cara, o mito de que os quadrinhos eram exclusivamente masculinos”, lembra Trina.

Segundo a historiadora, antes da Segunda Guerra Mundial, havia nos Estados Unidos muitas publicações de mulheres: o primeiro quadrinho de autoria feminina, por exemplo, teria sido publicado na revista Truth, em 1896, por Rose O’Neil. Na época, outras mulheres, como Flora Flirt, já faziam quadrinhos sobre o sufragismo – ao mesmo tempo em que Richard Felton Outcault “inventava” os quadrinhos na forma do personagem Yellow Kid.

Durante a Guerra, como aconteceu em muitos campos profissionais, as mulheres passaram a ocupar os lugares dos cartunistas homens que lutavam na Europa, conquistando espaço para criar personagens femininas como Yankee Girl (de Ann Brewster) e Blonde Bomber (de Jill Eglin e Barbara Hall) – e, pela primeira vez, assinando com seus nomes verdadeiros, em vez de pseudônimos masculinos.

Quando os homens voltaram, porém, retomaram seus empregos: “Aos poucos, foi se criando o mito de que mulheres não gostam do universo das HQs”, diz Trina. As quadrinistas mulheres, então, ou voltaram para suas cozinhas, ou se contentavam em desenhar novelas gráficas de amor voltadas para adolescentes.


Capa e trecho da HQ ‘It ain’t me babe’, que Trina Robbins ajudou a produzir nos anos 70

O primeiro insight de Trina sobre a participação feminina no mundo dos quadrinhos marcaria o começo de uma longa carreira de pesquisas relacionadas ao assunto, rendendo outros nove livros como A century of women cartoonists (1993), The great women superheroes (1997), From girls to grrrlz: a history of women’s comics from teens to zines (1999), e The great women cartoonists (2001) – nenhum deles traduzido no Brasil. “Minha maior descoberta, depois de tantos anos de estudos e pesquisas, é que se ninguém escreve sobre você, você é esquecida”.

“Campo só de homens”

Nascida em 1938, no auge da Era de Ouro dos quadrinhos de super heróis, desde criança Trina só lia histórias que trouxessem mulheres na capa, porque “aventuras de homens eram profundamente entediantes”. Mas garotas eram raras protagonistas – e foi por isso que, mais velha, decidiu tornar-se ela mesma quadrinista. O problema era que a Marvel e a DC Comics, as maiores editoras de quadrinhos da época, pouco se interessavam por mulheres, fossem autoras, leitoras ou personagens: “Por falta de espaço para publicar que eu decidi me envolver com os quadrinhos alternativos”, recorda.

Na época, imperava o Comics Code Authority, uma espécie de classificação indicativa rígida que, entre 1968 e 1975, pretendia vetar as HQs consideradas “ofensivas à família americana” – mas que, na prática, acabou incentivando um mercado paralelo de quadrinhos, independente e irreverente. “Nós, os hippies, passamos a criar histórias sobre as nossas vidas, sobre sexualidade, sobre drogas. Era bem mais interessante”, lembra Trina. No início, tudo ia bem: ela foi bem recebida, trabalhou com Frank Frazetta desenhando o figurino da personagem Vampirella, e suas primeiras tiras foram publicadas em um importante jornal underground, o The East Village Other.

Porém, mesmo entre os “intelectuais barbudos e libertários” que defendiam a liberação sexual e o feminismo, Trina não se sentia bem vinda. Enquanto cartunistas homens colaboravam uns com os outros, nenhum chegou a trabalhar com ela. Isso porque a maior parte deles usava da liberdade criada pelo alternativo para publicar quadrinhos humilhantes para mulheres: na coletânea Zap!, do quadrinista Robert Crumb, eram comuns histórias sobre mulheres estupradas até a morte, recebendo tiros na vagina, fazendo sexo com animais e sendo espancadas.

Trina, cansada, passou a criticar seus colegas. “Que diabos é engraçado quando se trata de estupro e assassinato?”, questionou ela, em 1988, em um evento sobre quadrinhos nos Estados Unidos. Na época, sua postura irreverente rendeu algumas inimizades, mas hoje Trina é conhecida como a “madrinha dos quadrinhos underground”.

It ain’t me, babe

Nos anos 1970, percebendo que o “clube do Bolinha” não a deixaria entrar, abandonou os quadrinistas homens e foi atrás do que parecia impossível na época: artistas mulheres. Por sorte, enquanto procurava emprego, ela conheceu Barbara “Willy” Mendes, Nancy Kalish, Carole Kalish, Lisa Lyons, Meredith Kurtzman e Michele Brand e, juntas, publicaram o It ain’t me, babe, o primeiro livro feminista de quadrinhos dos Estados Unidos, “e provavelmente o primeiro do mundo”, aposta.

Na capa, sob o título, personagens femininas criadas por homens marcham, furiosas: a Mulher Maravilha, Olívia Palito, Luluzinha e Sheena. “Nem pensei nos direitos autorais. Estávamos tão irritadas. Só desenhei e publicamos”, conta. O sucesso foi enorme para uma publicação experimental e independente: a primeira edição vendeu 20 mil exemplares; a segunda, 10 mil. “As mulheres estavam provando que elas também se interessavam por quadrinhos, mesmo que as grandes editoras estivessem cegas para isso”, diz Trina.

Pouco depois, a cartunista participou de outra coletânea feminina de HQs, a Wimmen’s comix, onde decidiu publicar a história Sandy comes out, sobre um casal de lésbicas, a primeira HQ publicada nos Estados Unidos a mostrar uma lésbica assumida, vivendo um relacionamento, e sem a comum fetichização masculina. “Eu realmente não me toquei. Sandy era minha companheira de quarto e eu queria contar sua história porque era legal”, ri.

Em 1971, ela publicou sua primeira história individual, a Girl fight, e produziu o livro All-girl thrills, outra coletânea de quadrinhos femininos. Mas, nessa época, os quadrinhos underground começavam a se firmar como uma mídia “séria” e alternativa à caretice das HQs de super heróis. Agora mais estruturados, os Comix contavam com editoras maiores, novas regras de publicação, valorização econômica e, claro, grande dominação dos rapazes que Trina abandonara anos antes.

Ao mesmo tempo, os espaços de venda estavam cada vez mais escassos para as quadrinistas: “Enquanto nossos ‘companheiros’ underground viviam em seus clubinhos, as lojas de quadrinhos mainstream eram apenas um monte de caras que queriam vender e ler histórias de super heróis. Deus os livrasse de vender quadrinhos underground feitos por mulheres”, lembra Trina.

Foi neste contexto que a “madrinha” decidiu deixar de vez a produção artística, que se tornava cada vez mais misógina, e atacar o sexismo em outra frente: a pesquisa histórica. “Minha maior vontade é ser lembrada como alguém que eu trouxe de volta à memoria comum mulheres cartunistas do início do século 20 que estavam esquecidas”.

Hoje, ela vê seu trabalho – e o de outras mulheres produtoras e estudiosas de HQs – como essencial para a destruição do mito de que narrativas gráficas seriam algo exclusivo de garotos: “Sinto que as editoras estão mais interessadas nas histórias e na qualidade da arte do que no sexo ou raça de seus criadores. No passado, você só podia publicar em grandes editoras se fosse homem e branco. O mundo das HQs nunca esteve melhor, a meu ver, para mulheres e para todos nós.”