'Deserto', de Jonás Cuarón, expõe a xenofobia levada ao extremo

Ficção com Gael García Bernal acompanha uma caça aos imigrantes na fronteira entre Estados Unidos é México: "É o que acontece quando alguém valida o discurso de ódio".

Por Xandra Stefanel

Um grupo de imigrantes luta para sobreviver durante a travessia da fronteira entre o México e os Estados Unidos. No caminho, eles encontram um lunático xenófobo que faz, por conta própria, a patrulha da divisa entre os países e caça todos os que são – sob o seu ponto de vista – "invasores". A trama de Deserto, segundo longa-metragem do diretor mexicano Jonás Cuarón, traz uma mistura explosiva de ação, drama e suspense. Tensão do início ao fim.

O filme estreou nos Estados Unidos em outubro de 2016 quando, ainda candidato à presidência, Donald Trump anunciava sua proposta para construir um muro afim de fechar a fronteira entre os dois países. Pouco mais de ano depois (e já com Trump à frente do governo americano), o longa chega aos cinemas brasileiros na véspera do feria de quinta-feira (2). E propõe uma reflexão sobre a questão da imigração, que vem tomando cada vez mais amplitude de crise humanitária em todo o mundo.

Assustadoramente violento, Deserto acompanha Moisés (Gael García Bernal) durante sua tentativa de reencontrar a família. Junto de outros homens e mulheres que contrataram “guias” para poder atravessar a fronteira ilegalmente, no caminho, o protagonista depara com Sam (Jeffrey Dean Morgan, o Negan, da série The Walking Dead), figura solitária que, munido de metralhadora e de um feroz cão de caça, persegue e mata os imigrantes que encontra pela frente.

O personagem do patrulheiro não foi inventado ao acaso. Ele foi inspirado no Minutemen Project, uma espécie de milícia armada que se autoproclama vigia da fronteira americana, acertando com armas de longo alcance os imigrantes que tentam cruzá-la. Depois dos discursos anti-imigrantes proferidos por Donald Trump, a voz desses grupos extremistas vem encontrando cada vez mais ressonância. “Jonás colocou nas telas o que acontece quando alguém valida o discurso de ódio”, declarou o ator Gael García Bernal ao jornal espanhol El País, lembrando que os norte-americanos tiveram dificuldades em digerir seu personagem. “Os Estados Unidos não estão acostumados com o papel de bandido do filme.”

Retórica de ódio

A paisagem árida e vazia do deserto ajuda a dar a amplitude da pequenês daqueles imigrantes sob o olhar de pessoas como Sam. “Meu desejo foi criar um filme que envolvesse o público de uma forma visceral, que fosse uma experiência catártica, e que ao mesmo tempo permitisse refletir sobre um tema tão complicado como a imigração”, declarou o diretor que foi indicado ao Oscar pelo roteiro de Gravidade, dirigido pelo seu pai, Alfonso Cuarón.

“O deserto não conhece nacionalidades, países nem fronteiras. Ali, todos são iguais, e são tantos os perigos que não conseguia tirar essa história da cabeça, precisava contá-la”, afirmou Jonás, que afirma ter tido a ideia para o filme durante uma viagem pelo Arizona, quando tinha 24 anos. Foi lá que ele ouviu pela primeira vez a retórica de ódio contra os imigrantes. Ao falar com Alfonso sobre o conceito do filme que gostaria de fazer, o pai se interessou especialmente pela narrativa que transforma o imigrante em herói.

Em entrevista ao semanário francês Télérama, Alfonso, que é um dos produtores de Deserto, mencionou a principal metáfora do filme: “Este deserto, que fique bem claro, é uma metáfora do que sentem essas pessoas que decidem deixar suas cidades e suas famílias. O sentimento que nasce dessa paisagem desoladora é a tradução de suas angústias. Faz tempo que a imigração é tratada como um problema. Não é um problema, é um fenômeno. Além do mais, nós todos somos imigrantes ou descendentes de imigrantes. Se um dia não tivéssemos imigrado, toda a espécie humana estaria ainda em alguma parte do sul da África, de onde todos viemos. A Europa, vocês sabem, também vive neste momento um período difícil ligado à esses fenômenos”, afirma Alfonso.

Com uma fotografia tão intensa quanto o roteiro, o longa de Jonás é um verdadeiro soco no estômago para quem tem o mínimo de compaixão pelo ser humano. Talvez Deserto seja uma espécie de filme de terror dos novos tempos, desta época em que a total falta de empatia pelo próximo não precisa mais nem de disfarce. Ao contrário: ela pode até ser premiada com um dos cargos políticos de maior poder no mundo.