Guadalupe Carniel: Más Unidos Que Nunca!

Que o Uruguai é o pioneiro em muita coisa na América Latina em se tratando de liberdades individuais não é nenhuma novidade. Foi o primeiro a autorizar o divórcio (e também a ação por iniciativa das mulheres), primeiro a estabelecer a jornada de oito horas de trabalho, regulamentar a prostituição, união civil e adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo.

Futebol Uruguai greve

Nos casos que não foi pioneiro, estava participando com os primeiros, como no caso do aborto (Cuba e Guiana) ou no caso de casamento entre pessoas do mesmo sexo que garante mais direitos que a união (Argentina).

Agora é no tocante do futebol do lado oriental a coisa tá pegando. Pra quem não viu, o jogador Lugano teve até que viajar às pressas para participar de uma reunião. O Torneo Clausura está interrompido por tempo indeterminado, já que a briga entre a Mutual e MUQN parece não ter uma solução.

De um lado está o movimento Más Unidos Que Nunca, liderado por grandes nomes do futebol atual do Uruguai como Lamas (Defensor Sporting), Agustín Lucas (Albion Football Club), Santiago "Bigote" López (Villa Española), Michael Etulain (Danubio FC) e Martín Conde (Nacional)  formado por quase todos os jogadores profissionais do país, ou seja, mais de 500 jogadores da Primeira e Segunda Divisão, além de contar com apoio dos atletas da seleção celeste. Um dos principais  questionamentos se refere aos direitos de imagem e sua comercialização, já que os jogadores queriam ter controle, fato que comentei no ano passado.

Para tanto, já estão organizados e cada clube tem dois “delegados", mas não possuem registro jurídico.

Do outro lado a Mutual

Uruguaya de Futbolistas Profesionales (MUFP), o sindicato dos jogadores uruguaios, que tem contrato com a Asociación de Fútbol Uruguayo (AUF) e tem que cumprir o Estatuto do Jogador. O grupo é liderado pelo ex-jogador Enrique Saravia, que segundo os jogadores não os representa fazendo tudo de forma unilateral e não os comunicando sobre o que acontece no sindicato.

Quando o Más Unidos surgiu, a Mutual apresentou uma denúncia judicial contra os jogadores que lideram o movimento: Matías Pérez, Diego Scotti, Michael Etulain, Santiago López e Pablo Castro, já que apenas o Sindicato deveria negociar com a Federação diretamente os direitos dos jogadores, seja trabalhistas ou de imagem.

Como não há consenso, tanto um lado quanto o outro pediram intervenção do governo. Fato não atendido.

Então, na quinta feira passada à noite, na casa do Jose Mujica (sim, o ex-presidente), representantes do MUQN e da Mutual se encontraram para tentar resolver o problema. A ideia seria um plano de ação no qual o coletivo abriria mão de três coisas: retorno às atividades, aceitar a comissão diretiva e que as próximas eleições sejam em dezembro de 2018 e não em março como o grupo reivindica. Mas o sindicato simplesmente decidiu manter a denúncia e foi aí que as coisas complicaram. Os jogadores decidiram suspender todas as atividades e exigem os três pontos citados até que seja feita uma assembleia com os sócios, que de acordo com a Mutual ficou para o dia 13 de novembro.

A AUF ficou mais irritada ainda quando descobriu que a assembleia entre sindicato e o coletivo está marcado para dia 13 de novembro ( a seleção tem dois jogos próximo à data, um dia 10 e outro dia 14, além do que o campeonato ficaria parado por 4 rodadas).

Diante disso, a AUF acusa a Mutual de falta de diálogo com os atletas, já intimou que haja um fim este conflito e já até cogita ignorar a sua representatividade, em comunicado emitido pelo Comitê Executivo, acabando assim com o convênio estipulado no Estatuto do Jogador. A AUF não tem como dar um “golpe de estado” no sindicato e acabarem com o contrato, mas estão perto de passarem a ignorarem, o que faria com que a Associação se aproxime cada vez mais do MUQN.

Como a Mutual tem a carga jurídica e tem que cumprir obrigações com o estatuto, o sindicato deve responder pelo conflito para a AUF. Se em 48 horas não forem resolvidos os conflitos, a Federação pode “desenvolver por si todas e cada uma das medidas necessárias para pôr fim ao conflito”.

O caso se torna único: enquanto na Argentina o futebol desmorona devido a escândalos extra-campo e no Brasil segue aquela máxima de “nada acontece” (talvez devido a classificação para a Copa ou ainda o Grêmio com sua vitória e a um passo da final da Libertadores), no Uruguai uma luta que começou por direitos de imagem, virou algo mais, se tornou por melhores direitos trabalhistas para os jogadores, como melhores salários, infraestrutura e acompanhamento médico.

Aqui nada se fala sobre este caso. Não, não é para não incitar os jogadores a fazerem o mesmo. Caso contrário o Bom Senso teria saído na frente dos charrúas e talvez pudesse ter mudado a cultura e estrutura do futebol no Brasil. Mas não foi o caso. E nem há de ser. É só verificar aquela máxima que sempre vale: o futebol é um reflexo da sociedade.

Vemos jogadores conformados com as condições que são impostas. O mesmo vale para qualquer trabalhador. Não convém em tempos de crise, principalmente perder o emprego. No caso de jogadores que já tem fama, vai além: não se pode perder o status conferido.

Como dizem, somente aqui, na América Latina os fatos tem isso: o tal do realismo mágico. O que para alguns seria um conto, aqui é a nossa realidade. Enquanto tentamos copiar um modelo europeu (sim, o mesmo serve pro futebol, infelizmente) que é onde vence o lógico, aqui o imprevisível espreita em cada esquina. Mas quando algo que irrompe o lógico acontece ficamos
alheios.

Somos alheios aos nossos vizinhos. Sim, o que mais se sabe é sobre os torneios ingleses, espanhóis, italianos. Quantos gols fulano fez em tal temporada na Alemanha. Mas pouco se sabe sobre o que acontece aqui do lado. Principalmente do que acontece fora de campo que pode mudar o que acontece dentro. Já passou da hora disso mudar.

E não adianta apenas os torcedores fazerem sua parte para mudar o que acontece nas bancadas. Os jogadores têm que assumir sim seu lugar de fala e se posicionarem diante das injustiças da lógica do mercado que acontecem e que, obviamente, afetam também a eles.