Bernardo Joffily: Rogério Lustosa e a nova Princípios

Este é o primeiro número (*) desta revista a sair sem a colaboração de Rogério Lustosa. Ele morreu do coração, de uma hora para outra do dia 21 de outubro passado, aos 49 anos de idade e quase trinta de militância comunista.

Rogério Lustosa - Foto: Arquivo CDM/FMG

A trajetória de Rogério representa até certo ponto o sonho e o plano de toda uma geração que fez, no Brasil e no mundo, a década de 1960 e muito especialmente 1968. Mineiro, estudando na PUC do Rio de Janeiro, ele entrou para a luta pelas portas da AP, Ação Popular, na época em que o golpe de 1964 empurrava aquela organização de estudantes e pensadores católicos de esquerda para a resistência clandestina, a radicalização e o marxismo.

Eram tempos tumultuados: assassinato de Edson Luís, “Massacre da Candelária”, tomada do palanque do 1º de Maio em São Paulo, “Sexta-feira Sangrenta”, “Passeata dos 100 Mil”, “Batalha da Maria Antônia”, “Congresso (da UNE) de Ibiúna”, tudo brutalmente interrompido pelo Ato Institucional Número 5.

Mesmo sem ter ocupado a ribalta da inesquecível agitação de seu tempo, Rogério foi um dos seus principais arquitetos. Com o “nome frio” de João Bigode, era ele que coordenava da clandestinidade a Comissão Nacional Estudantil da AP, que dava o rumo para boa parte do movimento estudantil da época (entre seus militantes estavam os presidentes da UNE e da UBES).

Que concepções empurravam milhares de jovens para a rua, para os enfrentamentos desiguais com a PM, para a aventura da conquista de um mundo revolucionário e socialista?

Predominava o marxismo, via de regra em versões “à esquerda”, maoísta ou guevarista. Mas um marxismo enxergado apenas como doutrina, a ser assimilada e defendida, e apenas residualmente como teoria a ser desenvolvida para responder às camas-de-gato que a história estava em vias de aplicar-lhe. Uma visão de mundo juvenil, a noção de que o movimento revolucionário compreende fases de fluxo e refluxo. Prevalecia a idéia de um ascenso linear, das passeatas para a guerrilha, a vitória e o Reino dos Céus.

Essas crenças passaram por uma rude prova depois que o Brasil mergulhou nas trevas da ditadura pós-Ato 5, das torturas, assassinatos e esquartejamentos políticos. Quando a vida política recobrou certa precária normalidade, com a Anistia de 1979, os incendiários de 1968, na sua maioria, reapareceram penitenciando-se por seus arroubos de outrora como pecados de juventude e defendendo idéias bem menos ousadas, enquadráveis na vasta gama das tendências social-democráticas ou social-democratizantes.

Poucos mantiveram suas convicções revolucionárias. E pouquíssimos enfrentaram o desafio bem maior de substituir os elementos românticos do revolucionarismo de 1968 por outros mais sólidos, científicos. Rogério Lustosa foi um deles. Não caberia aqui historiar as peripécias de sua militância — a rápida passagem pelo movimento operário de Contagem, a prisão e a tortura em Minas, a integração com a luta dos camponeses maranhenses do Vale do Pindaré, nova prisão e novas torturas no Maranhão e Ceará, o ingresso no PCdoB em 1972, a liberdade, as campanhas em defesa da Amazônia e pela Anistia, a participação no Secretariado do partido, a fundação e direção da Tribuna Operária, jornal perseguido, processado, apreendido, incendiado. Interessa, sim, observar que todo esse longo e atribulado itinerário teve sempre a revolução como norte. E reservou um espaço cada vez maior e mais nobre para a teoria revolucionária, até desembocar no relançamento de Princípios.

As carências teóricas são um antigo calcanhar de Aquiles do movimento popular e operário brasileiro. Derivam, em grande parte, da sufocante opressão cultural que pesa sobre nossas classes trabalhadoras e do vício colonial do ecletismo, tão disseminado em nossa intelectualidade. E são realimentadas pela cândida crença de que o “jeitinho brasileiro” pode encontrar atalhos alternativos às árduas, íngremes, tortuosas e extenuantes veredas que levam aos cumes do saber em matéria de ciência social. Decididamente, não mereceríamos o elogio que Engels fazia ao proletariado alemão, sobre o gosto pela filosofia. Mas o pior é que nunca ligamos muito para isso.

A debilidade teórica sobreviveu à introdução, tardia, do marxismo, à fundação do Partido Comunista em 1922 e, embora sofrendo revezes parciais, à organização do PCdoB em 1962. Consolidou-se e justificou-se escorada na “relativa estagnação” que vitimou o pensamento marxista-leninista também em escala mundial.

Porém, com a perestroika, a derrocada do Leste, a queda do muro e o fim da URSS, chegou a hora da verdade. Ficou patente que, ou bem damos uma prioridade nova a esta arena específica da luta de classes – que é o combate de idéias – ou a crise do socialismo, enquanto movimento, vai perdurar, prolongando, até a exasperação, o apodrecimento em vida do velho sistema burguês.

Foi nestas circunstâncias, em 1990, que Rogério Lustosa assumiu o desafio da direção da Princípios. A revista vinha de 1981, mas com periodicidade incerta, tiragem modesta, forma gráfica pouco atraente, pauta aleatória. Era preciso remodelá-la de alto a baixo, ou desistir da ambição de fazer dela um veículo de superação da crise teórica e não de acomodamento e contemporização.

Desta forma, Princípios entrou em sua nova fase: periodicidade regular, novo visual, conselho editorial, alargamento do corpo de colaboradores, artigos pautados pelas exigências que a luta de idéias coloca. Nos seus últimos números, permaneceram em foco especialmente as questões da democracia, crise do socialismo, da crítica ao projeto neoliberal. Não de pode dizer que os problemas da elaboração e da produção de teoria pertencem ao passado. Longe disso. Mas passou a haver uma nova disposição de enfrentá-los.

Rogério foi empreendedor dessa reviravolta. Morreu, num dia ensolarado no Parque do Ibirapuera, em pleno esforço para consolidá-la e levá-la adiante. Deixou a nova Princípios como uma ferramenta dos que acreditam que o socialismo, desde que se transformou em ciência, precisa ser tratado como tal, ou seja, ser estudado.