Até secretária de Temer quer revogar portaria sobre trabalho escravo

A secretária nacional de Direitos Humanos do governo Michel Temer, Flávia Piovesan, criticou abertamente a portaria publicada nesta segunda (16) pelo Ministério do Trabalho, que altera o conceito de trabalho escravo e dificulta a fiscalização dessa prática. De acordo com ela, a medida “compromete a execução da política” de combate a esse tipo de crime, “coloca em risco” a chamada Lista Suja e deve ser revogada.

Flávia Piovesan

Em nota que ela assina como presidenta da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), Flávia manifesta “profunda preocupação” com as novas regras. Na sua avaliação, a mudança “reduz drasticamente o alcance do conceito de trabalho escravo, ao praticamente limitá-lo às situações de restrição de liberdade”.

Em entrevista à BBC, nesta terça (17), Flávia analisou que a nova norma representa um "retrocesso inaceitável". Segundo ela, a Conatrae não foi consultada sobre as alterações. "Digo que é inaceitável e que temos que lutar pela revogação dessa portaria em caráter de urgência, porque realmente os danos são acentuados, as violações de direitos são gravíssimas", criticou, dizendo-se perplexa.

A secetária também avaliou que a portaria é ilegal, uma vez que contraria a Constituição e o Código Penal Brasileiro. Ela disse ainda que concorda com a orientação do secretário de Inspeção do Trabalho do ministério, João Paulo Ferreira Machado, para que os auditores não sigam as novas regras.

A advogada foi escolhida por Temer como representante do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos na Organização dos Estados Americanos (OEA), cargo que deverá assumir no mês que vem.

Confira abaixo a íntegra:

NOTA PÚBLICA sobre a Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho

Na qualidade de Presidente da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE, venho expressar profunda preocupação relativamente à Portaria 1.129/17, editada pelo Ministério do Trabalho e publicada no Diário Oficial do União, de 16 de outubro de 2017.

A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, instância responsável pelo acompanhamento do II Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, tem impulsionado, desde março de 2017, uma agenda de reuniões extraordinárias com diversos segmentos, incluindo vários representantes do setor patronal, acerca da necessidade de aprimoramento do Cadastro de Empregadores com regras ainda mais consistentes e critérios sólidos que embasem a atuação qualificada dos auditores fiscais do trabalho – com previsão de reunião para o próximo dia 1o de novembro, para discutir especificamente o conceito de trabalho análogo ao de escravo.
A pretexto de regulamentar o art. 2-C da Lei 7.998/90 – que prevê o pagamento de seguro desemprego aos trabalhadores resgatados do trabalho escravo – a nova normativa compromete a execução da política de combate ao trabalho escravo.

A Portaria 1.129, por meio de seu art. 1o, reduz drasticamente o alcance do conceito de trabalho escravo, ao praticamente limitá-lo às situações de restrição de liberdade e de escolta armada, esvaziando o núcleo elementar de condições degradantes e jornada exaustiva, em direta ofensa ao artigo 149 do Código Penal.

A portaria ainda estabelece que somente será válido para fins de constatação de trabalho análogo ao de escravo o auto de infração em que constar, obrigatoriamente, os seguintes itens: “a) existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel; b) impedimento de deslocamento do trabalhador; c) servidão por dívida; d) existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador.” Na prática, essas exigências reduzem a caracterização de trabalho escravo a alguns casos específicos e extremos.

A nova Portaria também coloca em grave risco a Lista Suja do Trabalho Escravo, instrumento reiteradas vezes reconhecido, internacionalmente, por sua efetividade no combate ao trabalho escravo contemporâneo. O art. 4º, §1º, determina que o nome do empregador só irá para o Cadastro de Empregadores autuados por trabalho análogo ao de escravo, se e somente se, houver determinação expressa do Ministro do Trabalho.

Por sua vez, o art. 4º, §3º, I, a Portaria 1.129, estabelece que o Relatório de Fiscalização de trabalho análogo ao de escravo somente será válido se dele constar Boletim de Ocorrência, lavrado por autoridade policial. Essa regra limita a competência do auditor fiscal do trabalho e condiciona a fiscalização do trabalho escravo à atuação policial.

Diante desse quadro, considerando o grave impacto da nova Portaria para a continuidade da política de erradicação do trabalho escravo, apelamos para a imediata revogação da Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho, por atentar à Constituição Federal, ao Código Penal e aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado Brasileiro.

Entendo relevante e essencial a valorização da CONATRAE como legítimo espaço de diálogo pluralista e construtivo, envolvendo representantes do Estado, da sociedade civil, dos empregadores, dos trabalhadores e da OIT visando ao fortalecimento de ações, medidas e políticas públicas voltadas à prevenção, combate e erradicação do trabalho escravo.
Brasília, 16 de outubro de 2017

Flávia Piovesan

Presidente da CONATRAE