O futebol feminino, a onda conservadora e o papel da imprensa

Acabo de ler o texto de Lúcio de Castro em seu site Agência Sportlight, cujo nome faz referência a equipe de jornalistas investigativos do jornal The Boston Globe e os casos de abuso sexual e pedofilia praticados por membros da igreja católica de Boston.

Lu Castro*

mulher e futebol

Em seu texto desta sexta-feira (13) Lúcio dá um banho sobre como é fazer jornalismo investigativo, sobre seu fundamental papel na construção de uma sociedade justa e dá uma chinelada em nosso modo tão raso de reportar os fatos.

Longe de ansiar escrever como Lúcio, abro o texto da quinzena fazendo referência ao seu trabalho porque é necessário toma-lo como exemplo de jornalismo bem feito, atacando o que deve ser atacado, expondo o que é preciso ser exposto e buscando transformar o ato de noticiar em serviço público de notória utilidade.

Se o futebol praticado pelos homens nos brinda com rivalidades seculares, com personagens dignos das mais belas biografias e aprofundamento de seu entendimento, o futebol praticado pelas mulheres, ainda que em escala menor, possui alguns dos mesmos elementos, mas ainda é tratado com alguma condescendência quando assuntos cabeludos vem à tona.

Se há a necessidade de reforçar a importância da mulher e sua relação com o futebol, há também a necessidade de colocar o dedo nas feridas ainda abertas e que não são poucas. Se há a necessidade de enaltecer o papel da mulher dentro e fora das quatro linhas, há também que se apontar a subserviência que permeia as relações no universo da modalidade, e isso passa, obrigatoriamente, pelo papel da imprensa que se dispõe a evocar as deusas da peleja futebolística em nome da igualdade de condições.

Para além da obrigação de discorrer sobre os fatos cotidianos da modalidade, é preciso bater constantemente na inércia que, por sua força, mantém o status quo de alguns poucos non gratos personagens. E este último tem sido o foco da minha atuação.

Retomo parte do assunto que mexeu com parte da estrutura da modalidade nas semanas que passaram, para destacar o quanto a onda conservadora atinge todos níveis da sociedade. Se começou com uma arquitetura de fazer inveja aos mais mirabolantes planos de Cérebro e seu desastrado auxiliar Pink, tem, hoje, suas bases muito bem pavimentadas com o aceite e aprovação de boa parte da população, que, por seu caráter de massa de manobra, ratifica com orgulho o discurso da parte mínima que desde sempre conduz as coisas por aqui.

E o futebol, como representação do mundo, não passa imaculado. Dentro dele se reproduz as ações pérfidas de meia dúzia de homens cuja sanha de poder e acumulação faria inveja a Nonô Correia.
Não precisamos tomar grande distância. O recente episódio com Carlos Arthur Nuzman mostra com propriedade a doença do acúmulo em detrimento do bem comum. As malas de Geddel, outro grande exemplo. Alguns personagens do esporte brasileiro, que batem no peito sobre sua sapiência, nada mais fazem que lançar fumaça sobre sua real atuação neste cenário: perpetuar as relações de poder e manter a classe trabalhadora satisfeita, ruminando o capim no pasto que lhe é destinado, feito a ração “eliminadora da fome” proposta pelo gestor que “administra” a cidade de São Paulo.

Se temos condições de fazer alguma análise sobre o momento político/econômico/social do país com base em nosso cotidiano e as dificuldades que o golpe nos impôs, por que fugimos à análise equivalente dentro do esporte? Por que agimos e reportamos os fatos esportivos como se dissociáveis fossem da nossa vida coletiva e das dificuldades diárias?

A demissão de Emily do comando da seleção feminina é prova irrefutável desta perniciosa relação de poder, em que a vontade de transformar para melhor, é refutada em nome de velhos e conhecidos privilégios, porém não é fato recente na modalidade. A necessidade de manter sob controle as protagonistas do jogo, é prática antiga e esbarra, inevitavelmente, no consentimento de quem verdadeiramente faz o jogo acontecer.

É preciso, ainda que gere antipatia, esmiuçar e pontuar os erros e acertos destas relações, sem ser indulgente com esta ou aquela personalidade como normalmente se observa no que se reporta sobre o assunto. De “coitadas” a “guerreiras”, reforçamos o argumento de que as possibilidades de mudança não avançam, única e exclusivamente, por responsabilidade dos que insistem em manter padrões conservadores. E não são.

Se as entidades seguem à risca a manutenção de personagens defensores e replicadores do discurso individual e que cumprem felizes seu papel tão apequenado na história, o questionamento e a resistência encontram – ou deveriam encontrar com mais assiduidade – abrigo no papel do jornalismo esportivo/investigativo.

A justificativa para a demissão de Emily e as declarações tão carregadas de falta de conhecimento sobre o futebol feminino e misoginia do atual coordenador da modalidade na CBF, foram suficientes para mexer com o brio de atletas, ex atletas e “desprestigiados” como eu, Rafael Alves, Eduardo Pontes e Juliana Cabral.

A mobilização de atletas renomadas e com marcas históricas como Cristiane, Formiga e a eterna Sissi, ganhou atenção não só em terras brasileiras como também na gringa. O jornal New York Times destacou a declaração de desligamento de Cristiane da seleção em seu site e também no impresso. A BBC de Londres também tratou do assunto, entre tantos outros espaços mundo a fora.

Com a imprensa fazendo o que deve fazer, Marco Polo, aquele que não pode viajar, tratou de buscar reverter o quadro desfavorável a que seu comando está exposto: convocou reunião com as assinantes da carta para terça-feira (17<, na sede da CBF.

Impossibilitadas de comparecer em razão da distância, o grupo será apenas representado nesta primeira reunião, desejando que esta seja apenas a primeira de outras, já que o assunto exige tratamento urgente e esteja bem embasado, o que não será possível num todo, já que as atuais protagonistas estão em atividade por seus clubes.

Deste lado de cá, dentro do que me cabe, observo a convocação para uma reunião como um ato eleitoreiro com vistas à eleição na entidade no ano que vem. Ora, é preciso angariar simpatia e bons olhos não somente entre os votantes como também com a FIFA.

Adotar uma atitude pretensamente aberta ao diálogo após episódio sofrível e carregado de equívoco, soa aos meus ouvidos como conveniência. E de conveniência, elementos conservadores, apegados ao status quo e famintos por cliques e audiência, o jornalismo esportivo se farta há décadas.

De manchetes infelizes a conteúdo com “nada de novo no front”, as editorias esportivas, em sua maioria, seguem sublinhando o que estamos vivendo de pior. Cabe, a quem pretende fazer do jornalismo não só sua profissão como filosofia de vida, mudar o cenário e se espelhar em Lúcio de Castro. Talvez não pague as contas, não mantenha o rosto em evidência, mas, certamente, estará seriamente comprometido com a lisura. E esse é o papel do jornalismo, ou pelo menos deveria ser.

Comungar com a onda conservadora trará um alto preço a se pagar: o de fazer par aos mais nanicos da história. Há quem não se importe ou que não tenha olhos para enxergar, mas há Lúcio de Castro e este é e será gigante para a história da profissão.

Salve, Lúcio!