"Taxa de homicídio no Brasil é fruto de país arcaico e racista"

"Eu diria que as desigualdades sociais, políticas e econômicas, bem como a descomunal taxa de homicídio no Brasil, são frutos de uma mesma árvore: um país arcaico e racista, cujas elites possuem mentalidade ainda escravocrata, em que é naturalizada a ideia de privilégios para poucos, em detrimento do bem comum”, diz Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, um dos coordenadores do Atlas da violência, publicado pelo Ipea.

Daniel Cerqueira

Daniel Cerqueira é doutor em economia pela PUC-Rio, professor dos programas de MBA da FGV. Diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em três semanas, são assassinadas no Brasil mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo nos cinco primeiros meses de 2017. Isso é fruto da desigualdade política, social e econômica que o país vive?

Eu diria que as desigualdades sociais, políticas e econômicas, bem como a descomunal taxa de homicídio no Brasil, são frutos de uma mesma árvore: um país arcaico e racista, cujas elites possuem mentalidade ainda escravocrata, em que é naturalizada a ideia de privilégios para poucos, em detrimento do bem comum.

É essa mentalidade que sanciona as desigualdades por vários canais, seja pela transferência de recursos do Estado para uma pequena elite política, jurídica e empresarial via subsídio, transferência de benefícios financeiros e salariais para uma nata do serviço público (acima, inclusive, do teto constitucional). Há provisão injusta de serviços públicos. A cartografia das cidades é um bom retrato deste ponto. Veja onde estão localizadas as boas escolas, os bons hospitais, o judiciário, o bom e farto policiamento etc.

Do outro lado, existe um enorme contingente populacional à margem do sistema, com crianças sem condições minimamente adequadas para um desenvolvimento sadio e jovens sem oportunidades de acesso à boa educação e ao mercado de trabalho. Quando esses jovens, condenados a uma vida de restrições materiais e simbólicas, são mortos violentamente – estando ou não envolvidos com o mundo do crime – a sociedade aplaude, pois já o condenou pela segunda vez, como bandido e indesejável. E assim naturalizamos os homicídios no Brasil, que já respondem por mais de 10% do total de casos no mundo.

Junto com a publicação do Atlas da violência foi criado um portal para oferecer aos usuários conteúdo sobre segurança pública, com dados, mapas e gráficos sobre incidentes violentos, entre outras informações sobre o tema no Brasil. Como surgiu a iniciativa? Essa é uma forma de popularizar os dados da violência no país?

Essa é uma iniciativa do grupo de pesquisadores sobre segurança pública da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do IPEA, junto com membros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne policiais e estudiosos do tema. Acreditamos que a informação e a ciência libertam. Elas ajudam a desfazer mitos, possibilitam a reflexão, o tensionamento do sistema e das autoridades, além de tornar possível a análise racional das políticas públicas, que deveriam ser orientadas pelas evidências empíricas. O portal pretende ser um instrumento para ajudar nessa trajetória, ao fornecer acesso fácil e rápido de dados, conteúdos e boa informação.

O Atlas dedica um capítulo para a violência contra os negros. Entre os dados apresentados, chama a atenção o fato de que, a cada 100 homicídios, 71 são cometidos contra negros. Um jovem negro tem 2,6 vezes mais chance de sofrer um homicídio do que um jovem branco. Esses dados refletem uma sociedade racista, ou são decorrentes das desigualdades econômicas?

As duas respostas são verdadeiras. A condição socioeconômica é um preditor importante da probabilidade de a pessoa sofrer homicídio no Brasil. Há uma regularidade estatística espantosa sobre as circunstâncias e o perfil das vítimas, reproduzidas nos dados de 2015: 71% eram negros; 53% eram jovens; 73% não possuíam o ensino fundamental.

São sempre os mesmos: jovens, negros, com baixa escolaridade e que moram e morrem perto de suas casas nas periferias das grandes cidades, alvejados por perfurações de armas de fogo.

No entanto, em exercícios econométricos que fizemos na cidade do Rio de Janeiro, com microdados do censo demográfico do IBGE e do Ministério da Saúde, encontramos evidências de que a questão não é apenas social, mas passa pelo racismo. Considerando indivíduos do mesmo sexo, mesmo estado civil, mesma idade, mesma escolaridade e residentes no mesmo bairro, o cidadão negro possui chances 23,5% maiores de sofrer homicídio. Nesse estudo, verificamos que 79% das pessoas que participavam do grupo com maiores probabilidades de serem assassinados eram negras.

O mesmo pode ser atribuído à violência contra as mulheres negras, que é bem maior que contra mulheres brancas?

Certamente. A condição social é um elemento explicativo importante. No entanto, do ponto de vista científico, a questão empírica da violência contra as mulheres é um tema ainda pouquíssimo explorado no Brasil, pela falta de dados minimamente adequados. Existem duas grandes categorias para as quais não há informações precisas: as violências sofridas em decorrência das questões gerais da sociedade; e aquelas resultantes de motivação de gênero. Como não sabemos sequer o número de casos pertencentes a cada um desses conjuntos, não conseguimos ter um diagnóstico claro da questão.

Entre 2005 e 2015 houve um crescimento de 7,3% no número de homicídios contra mulheres. Porém, esse indicador diminuiu 1,5% entre 2010 e 2015. É possível fazer um paralelo com esses dados e o aumento no número de denúncias que o Disque 100 registrou nos últimos anos?

São duas fontes de dados que, possivelmente, estão registrando dinâmicas diferentes. O crescimento dos homicídios de mulheres na década pode estar refletindo o crescimento da violência letal que acometeu homens e mulheres.

A esse respeito, cabe também assinalar o crescente papel da mulher no mercado de trabalho, inclusive nos mercados criminais, onde elas passaram a atuar nos escalões mais baixos do narcotráfico. Por outro lado, as informações do Disque 100 e 180 dizem respeito exclusivamente às violências envolvendo questões sexuais e de gênero.

Porém, o aumento observado no número de denúncias pode não refletir a variação da prevalência de casos de violência, mas a maior predisposição da mulher em prestar queixa. Precisamos ter em mente que a jornada contra o machismo e o patriarcalismo no Brasil é absolutamente nova e torna-se mais efetiva apenas após a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006, quando muitos homens e mulheres nos rincões descobriram que era crime bater em mulher.

O documento traz dados em relação ao uso de armas de fogo, apontando que, enquanto no Brasil a taxa de homicídios associada ao uso de arma de fogo é de 72%, na Europa é 21%. O Atlas traz três questões que refletem esse dado. Poderia explicar melhor esses elementos?

A literatura internacional é consensual em afirmar que quanto mais armas, mais crimes e mais homicídios. Segundo nossas estimativas, baseadas em trabalhos econométricos com identificação causal, a cada 1% a mais de armas nas cidades, há aumento de 2% na taxa de homicídio.

Ao contrário do que as pessoas normalmente acreditam, a disponibilidade da arma de fogo dentro do lar conspira contra a segurança da própria família e contra a segurança de toda a sociedade. Existem três canais que explicam esse fenômeno. Em primeiro lugar, boa parte dos homicídios ocorre em decorrência de motivações interpessoais, são casos de ciúmes, brigas de vizinho, de bar, de trânsito, que, quando envolvem arma de fogo, muitas vezes terminam em tragédia.

Os casos envolvendo criminosos contumazes que vão à esquina assaltar e terminam cometendo homicídios não passam de 3% ou 4%. Nos estados onde há estatísticas de motivação, crimes relacionados ao narcotráfico representam cerca de metade do total, o restante é cometido pelo “homem de bem” que, num momento de fúria e com a arma na mão, acaba com a vida de outra pessoa.

O segundo ponto é que, quanto mais armas de fogo no mercado legal, mais armas serão furtadas e extraviadas, caindo no mercado ilegal. E isso faria com o que o preço diminuísse, possibilitando o acesso mais fácil pelo criminoso desorganizado, geralmente aquele mais perigoso, que termina cometendo latrocínio.

Em terceiro lugar, arma é um instrumento de ataque e não de defesa. O cidadão armado possui maiores chances de ser morto em um assalto do que alguém desarmado, em vista do fator surpresa.

O Atlas traz dois exemplos de estados que conseguiram diminuir de forma significativa as taxas de homicídio e violência (“Pacto pela vida” em Pernambuco e “Estado presente” no Espírito Santo). Desenvolver políticas como essas é uma realidade possível para todos os estados? Em sua opinião, o que falta para que políticas como essas se tornem comuns?

Sim, é possível diminuir o crime. Falta o essencial: o real comprometimento dos governadores, prefeitos e presidente da república com a vida das pessoas.